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Sintonia

por Marcos Lacerda

 

Assisti Sintonia e gostei muito da 1º temporada. A segunda acabou de estrear no Netflix. Embora tenha o mundo funk paulista como pano de fundo, está longe de ser uma série exclusivamente sobre funk, portanto o jogo enfadonho de juízos de valor para saber se há ou não canções relevantes no funk paulista, se é preciso ou não legitimar o funk para a “crítica”, não faz o menor sentido para a série que é, acertada e sabidamente, muito mais interessante e verdadeiramente crítica que isso.

 

O que está em jogo, em verdade, não é bem a estética funk em si, mas é o que ela traz de desejo de construção de uma estilística da existência e, ainda mais, desejo de estetização do cotidiano que vem, no entanto, atravessados por enigmas sociais, políticos e culturais muito profundos, incluindo contradições insolúveis, como as associadas ao mercado de massa. O sonho de se tornar pop star da cultura de massas conversa com outros sonhos, como os de ascensão no crime organizado e o de liderança nas igrejas neopentecostais. É em torno, aliás, deste três elementos, canção popular de massa, crime organizado e igrejas neopentecostais, que gravitam os principais personagens da série, amigos de infância que vão seguindo um caminho próprio, mas que se encontram, de alguma maneira

 

A série apresenta a complexidade estrutural de ambiências urbanas que, embora situadas nas periferias paulistanas, vão muito além delas. E estas ambiências envolvem trabalho subalterno em pequenos mercados populares; trabalho informal na venda de bugigangas em estações e metrô e trem; trabalho no meio termo do formal e informal no mercado de canções do funk paulista; ações criminosas no tráfico de drogas e o trabalho nas igrejas neopentecostais

 

Nenhuma dessas ações sociais são pensadas fora de uma dimensão sistêmica. Por conta disso não há juízo de valor individualizante: trabalho informal, tráfico, igrejas evangélicas, pancadão, trabalho formal precarizado, tudo é visto como parte de uma estrutura maior, com vários graus de interdependência. Em outras palavras, todas elas estão em “sintonia”, pois fazem parte de uma mesma estrutura social cuja mediação principal é o dinheiro.

 

É o dinheiro, ou melhor, o Capital (a relação social que o dinheiro traduz) que envolve numa trama construída com muita inteligência crítica estas ações associadas ao trabalho precarizado, incluindo a atividade criminosa. É muito significativo ver as cenas que mostram o dinheiro circulando no mercado popular, na compra das bugigangas no metrô e trem, nos shows de canção popular, na compra de drogas nas bocas de fumo, no comércio dos pancadões e fluxos, no dízimo nas igrejas evangélicas neopentecostais.

 

Os três principais personagens são exemplos comuns e bastante conhecidos de filhos da classe trabalhadora precarizada. Doni (João Pedro de Correia de Carvalho, o Mc Jotappê), o primeiro, sonha em ser cantor e compositor de canções populares e habitar o estrelato do mundo funk paulista; Nando (Christian Malheiros), tem como ambição principal subir no mundo do crime e conseguir cargos de chefia; Rita (Bruna Mascarenhas), é uma jovem que sonha em ser autônoma, ganhar o próprio dinheiro, como trabalhadora informal e que acaba por se associar às igrejas neopentecostais.

 

Mas cabe um destaque especial a Nando. Em vários momentos, quando ele aparece no centro da cena, seja na casa da família, com os outros dois amigos, em meio ao fluxo, nas reuniões com os integrantes do PCC, ou mesmo dirigindo sozinho no carro, os seus olhos estão sempre apreensivos, estão sempre atentos, com uma tensão que revela, através do seu olhar, a relação complexa entre as três ambiências que compõem todo o enredo da série: o mundo funk paulista, as comunidades evangélicas e o crime organizado. É como se o olhar dele em cena revelasse o sentido mesmo do que está em jogo nesta série que é uma das mais bem sucedidas entre as séries brasileiras na Netflix, o que não é pouco.

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