UMA CANÇÃO clássicos e contemporâneos
editores:
Marcos Lacerda & Alexandre Marzullo
COMPOSITORES - RONALDO BASTOS
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O Sol na poética de Ronaldo Bastos
por Marcos Lacerda
Introdução
As canções de Ronaldo Bastos estão presentes de forma duradoura no imaginário afetivo do povo brasileiro. Servem como uma espécie de educação afetiva difusa, orientando e reorientando narrativas pessoais, mobilizando pulsões, desejos e outros sentimentos demasiado humanos. Mas também ecoam aspectos da realidade política, social e histórica do país. Suas canções atravessam alguns dos nossos períodos históricos mais tensos e continuam vivas até hoje. Basta pensar em Nada Será Como Antes, cujos versos até hoje nos lembram o complexo período que enovela movimentações da esquerda cultural, luta armada, CPCs da UNE, ditadura civil-militar, cinema novo, mas que permanecem como expressão de tentativa de superação das sensações de sufocamento social, cultural e existencial em tempos de ascensão de regimes autoritários. Uma canção clássica, digamos assim, se entendermos “clássico” como obras de arte que podem ser sempre ativadas como forma de interpretação histórica, vivência pessoal, afirmação de si ou experimentação da sensibilidade, independente do período histórico ou do contexto em que foram feitas.
Ao analisar estas canções, com temática política mais explícita, as nomeei como uma das variações da sua poética: “A política e a poética da canção”. No entanto, isso não vem a significar que muitas outras canções não podem ser associadas a tentativas de pensar o Brasil através da forma, a um tempo clara e enigmática, da canção. Por exemplo, numa outra variação da sua poética, mais associada a uma busca do Belo, há um conjunto de canções que também ecoam períodos históricos e políticos do país. Podemos pensar aqui em Sol de Primavera, que parece pedir uma conciliação depois de anos de luta e tensão, ou Sal da Terra que, do mesmo modo, sem negar a urgência das lutas por igualdade social, antecipa muito da sensibilidade ecológica como modo de habitar o mundo e, mesmo, resolução de conflitos aparentemente insolúveis. Como não se comover com estes versos de Amor de Índio, uma ode ao trabalho como instância da humanidade do homem:
Sim, todo o amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do teu suor
É como se as tensões sociais, políticas, culturais, além da própria presença de momentos e movimentos da historicidade da vida humana estivessem, de alguma forma, atuando como elemento possível da reflexão poética da canção, embora nunca como determinante último. No entanto, ainda assim, o amor pelas coisas simples e a percepção do tempo como tempo cíclico em Lumiar, por exemplo, parecem ser uma resposta, ou melhor, a revelação de uma dimensão no modo de sentir o mundo que é diferente do tempo histórico da urgência da luta política e mesmo da afirmação de si que se vê em Fé Cega, Faca Amolada. E é neste sentido que vamos apresentar algumas considerações sobre a presença do Sol em sua poética.
O Sol como luminosidade e sombreamento
Quando escrevi o livro “Hotel Universo: a poética de Ronaldo Bastos” ficou em mim a sensação de que tinha aberto uma série de sendas possíveis para a análise e apreciação da obra do Ronaldo Bastos. O objetivo do livro era este mesmo, chamar a atenção para a grande obra dele e estimular, quem o saber, outras análises, de diferentes feições, biográficas, teóricas, ensaísticas. Na medida em que lia e relia o texto ia vendo claramente que dimensões da sua poética poderiam ser mais ampliadas, como se ficassem ali como possibilidade de estudo, como se fossem caminhos mais ou menos abertos. Em suma, como sugestões para quem pudesse ter o interesse de observá-las com mais atenção.
O mar, por exemplo, como expressão de expansão de si e possibilidade de afirmação do sujeito para além das suas tipificações sociais; as cores entranhadas nas palavras, com seus cromatismos ora densos, ora de uma leveza sutil e delicadíssima; a relação extremamente complexa entre um olhar para vanguardas de pensamento radicalmente cosmopolitas e, ao mesmo tempo, o vínculo com as linhas mais nobres da canção brasileira; a insuspeita e enigmática organicidade da sua obra, a despeito (ou por conta?), da diversidade de parceiros com suas próprias tessituras harmônico-melódicas, e assim por diante. Eram muitos os temas possíveis de serem ampliados a partir do meu ensaio.
Um deles dizia respeito ao Sol como presença marcante em sua poética. O sol como claridade e, também, como sombreamento. O sol como instância que confere e revela a beleza lúcida das coisas, mas que, ao mesmo tempo, oculta aspectos do real. O sol como luminosidade difusa que pode tanto orientar os sentidos quanto cegá-los. O sol assim como o Belo, que traz conforto e inquietude, acolhe e esmaga, enaltece e inibe, afirma e angustia, gera espaços de dúvida desesperada, com sensações do informe e do vazio da existência de si, em meio ao desejo de imersão na totalidade das coisas.
O sol oculto de Quanto Tempo, por exemplo, tem a natureza distinta do sol que atravessa sensações de plena alegria em O Trem Azul. Nesta canção, das mais conhecidas do seu repertório, a luminosidade solar é amena, se confunde com a imagem feliz da pessoa amada e mistura-se ao trem, ao pensamento, num deleite que envolve a vida e as palavras:
Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o tempo vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar
Algo bem diferente de Nada Será Como Antes. Neste caso as palavras são ditas de forma dura e denotam urgência, revelando um sentido antevisto pelo poeta que se transfigura em profeta dos novos tempos que se anunciam. O tom é de afirmação, mas também de desespero. As palavras não podem, elas também, esperar e vagarem soltas na cabeça perdida entre o trem, o sol e a pessoa amada. O sol aqui é o sinal de resistência de uma força que não se diz, mas que está ali, vivíssima, quente, rasgando espaços e fazendo aparecer a cara do real:
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
Os tons amenos e afirmados das canções ganham uma intensidade mais concentrada e noturna em Flor Lunar. Nela há uma concentração de sentido da beleza no olhar de alguém cuja presença faz aparecer sentimentos ambivalente no coração do poeta
Pele de verão, flor lunar
Súbita explosão
De um sol na mesa de bar
A beleza inquieta, gera angústias, sombreamentos. Algo bem diferente da presença do sol em Nuvem Cigana. Canção que chama o interlocutor para um processo doce de despersonalização, para a alegria de saber e se deixar tomar pela intensidade das coisas reais, pela natureza refletida no batimento do coração. Ainda mais, pela capacidade de se entregar a uma celebração bela da vida tal qual ela é, sem grandes preocupações pessoais, sociais ou históricas. O amor pelas coisas simples. O chamado ao enlace com a intenção genuína de fazer o outro se transformar na alegria calma das vivências da natureza:
Se você deixar o sol bater nos seus cabelos verdes
Sol sereno, ouro e prata
Sai e vem comigo
Em Alma de Pierrô o encontro terno com o amor se confunde com a presença do sol. O avesso da tristeza, da angústia, da solidão, da dúvida, do desespero, da opacidade de si. E foi só por causa do amor/que na minha vida faz sol. Quão diferente é esta afirmação do estado de dilaceramento e fissura subjetiva em Um Mundo Estranho. Nela temos um sujeito que já não se sabe, que mal sabemos se é uma voz incorpórea cuja dor parece ser sem fim e sem fundo. Esta voz incorpórea clama a um Deus ausente e desconhecido um sentido para um tipo de experiência do Real que não se deixa transformar em figuração clara e precisa:
Meu amor, já passou
Foi só um mundo estranho
Nada mais, peço a Deus, o dom de esquecer
Tamanha sensação de desconforto repele até mesmo o sol, expressando um vazio cuja intensidade e estranheza é inalcançável (ninguém atravessou até o fim / mais perto nem o sol ousou chegar). Tal estranheza é deixada de lado em Lumiar, que evidencia um vínculo profundo com as coisas do mundo. Ecoa o espírito de Nuvem Cigana e O Trem Azul com a plenitude de si ao lado da celebridade da vida e da natureza. Se alimentar, amar as coisas simples, vivenciar o instante como eterno. Saber ser e lidar com o presente, com o tempo despreocupado da história, da política, da urgência das ações. Como dizem seus belos versos: Estender o sol na varanda até queimar / que é pra não ver o tempo passar.
O tempo para, interrompe a loucura da vida imersa na lógica do capital, assim como em Quanto Tempo, cuja delicadeza da forma soa como se fosse uma pintura, como se as palavras entranhassem nas cores e nas coisas do mundo, de tal modo que não possamos mais distinguir palavra, cores e coisas. E é justamente neste lugar que se situa uma canção como Hotel Universo, que deu título ao livro e pela qual terminamos essa nossa breve reflexão. Nela há um cromatismo flutuante enovelando vento, coração e cores. Tudo valendo como uma forma própria de habitar o mundo que aproxima existência de si com sentido do mundo, domínio sublunar com ambiências cósmicas, terra e céu, afirmação da singularidade pessoal com desejo de despersonalização no Outro.
Na terra do sol
Queima coração
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