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Contemporâneos

por Marcos Lacerda

Na coluna Contemporâneos, vou apresentar o perfil de artistas da canção brasileira contemporânea, através de textos que ficarão no limiar do ensaio e da biografia. Começo com Negro Léo, artista nascido no Maranhão, formado no Rio de Janeiro e que, atualmente, mora em São Paulo. É um dos mais importantes cancionistas contemporâneos, com uma relação afiada com o experimentalismo formal.

NEGRO LÉO

 

PARTE I

O IFCS, a primeira formação e as protocanções

 

Era comum encontrar Negro Léo no pátio do IFCS, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, no Largo São Francisco, centro do Rio de Janeiro. A camisa solta, bermuda branca e uma espécie de sapatilha, além do indefectível óculos remendado. Muitas vezes trazia o violão a tiracolo.

 

Estava quase sempre acompanhado de Luis Augusto, o talentoso artista plástico e, nas horas vagas, autor de canções. Quando eu chegava ao instituto, sempre o via ali. Demoramos um pouco para sermos amigos. Lembro de um dia, já no final da aula, de conversarmos sobre canção popular, vanguardas estéticas, movimentos artísticos. E, a partir daí, não paramos mais de voltar a estes temas.

Léo já vinha formado, tinha uma relação muito real com a canção e com experimentos formais mais vigorosos que, depois, seriam uma das características mais conhecidas na criação da sua obra. Mas estava ali, naquele momento, tudo ainda em gestação. Era comum vê-lo fazer, junto a Daniel Fernandes, o Jazz Daniel, baterista de free jazz e ouvinte sofisticado de música americana, fazer pequenos happenings, nos intervalos ou entre as aulas, numa das salas que servia como ponto de encontro da moçada mais esperta do Instituto.

Num deles viria a apresentar uma forma de canção que chamava de “protocanção”. Seria um limiar entre a canção comercial, os experimentos do som sem palavra e os jingles publicitários. Mas seria também algo como a busca por uma limpeza formal na canção popular, como se fosse uma espécie de fonema zero. Depois, viria a descobrir que um teórico da canção, como Luiz Tatit, trabalhava com o termo como um lugar impreciso, entre a função enunciativa, a temática e figurativa da canção. A protocanção era o espaço aberto para a possibilidade de explicitar dimensões dessa linguagem artística, que ficavam como que ocultadas pelas formas mais convencionais, ou mesmo mais experimentais.

Não lembro bem o que cantou nos happenings. Assisti um deles. Durava pouco tempo. Nele, Léo tocava o violão, Daniel batucava na mesa da sala. Luis Augusto talvez fizesse algum vocalise, falsete, ou emissões de sons como prefiguração da palavra. Aquilo já me interessou de imediato. Fui ficando mais próximo do Negro Léo, querendo entender melhor o que estava se construindo naqueles encontros furtivos. As protocanções pareciam, assim, um primeiro esforço de criação e conversação ativa sobre os sentidos da canção brasileira e o lugar dele nela, que vinha se desenhando ali já como algo necessário e inevitável.

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PARTE II

Abolição: a época de ouro

Quem não viu o subúrbio distante, numa valsa o cantor soluçar. A “Valsa do Meu Subúrbio”, de Ewaldo Rui e Custódio Mesquita cabe muito bem aqui. É a hora de fazermos uma primeira aproximação de Abolição, o bairro do subúrbio carioca em que Negro Léo morou por alguns anos, dividindo um apartamento na avenida Dom Hélder Câmara, mais conhecida como avenida Suburbana. Nestes primeiros textos ficaremos entre o IFCS e o bairro de Abolição. Será nosso circuito principal. Também pelas noites do centro da cidade, pelos clarões que surgiam repentinamente no meio da madrugada. Tempestades imprevistas entre copos, bares e ruas escuras, algumas sem saída aparente.

Abolição é um dos principais bairros do Rio profundo. Entre Madureira e Cachambi, se aproximando de Cascadura e Engenho Novo. Por este bairro já passou alguns dos principais artistas da canção brasileira associados à geração do pagode carioca da década de fins da década de 70, que veio a se consagrar décadas depois. Pode colocar aí Jorge Aragão, Jovelina Pérola Negra, Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Marquinho Satã, entre tantos, que percorreram a avenida suburbana, do largo de abolição, passando pelo Sambola e pelo River. Também os bate-bola, a turma do carnaval carioca que circula pelos trens e ruas deste canto da cidade, com máscaras e fantasias que lembram o entrudo, o carnaval antes do carnaval oficial, o carnaval da pura pulsão, dos bailes primitivos, no sentido de primevo, primeiro.

Neste apartamento posso dizer, sem medo de errar ou cometer exagero, foram realizados encontros de grande importância para a sua formação. E isso em todos os sentidos: cultural, estético, social, poético e musical. O apartamento era um ponto de encontro tenso, poderoso, com uma gente jovem, culta e, por vezes, lindamento desorientada. Tinha uma canção do Negro Léo, deste período, feita através do poema de um amigo de infância, que refletia bem o sentimento difuso e sem forma que tínhamos todos que íamos ao bairro e participávamos dos encontros: Naquelas tardes de fascínio e perseguição / onde o corpo é vento.

Eu fiz parte deste grupo, por isso tenho lembrança muito vívida de tudo, ou quase tudo. Comigo, figuras como Marcelo, um violonista que gostava de tocar coisas do Clube da Esquina, melodias difíceis que saíam com muita naturalidade do seu violão. Tocava a canção, cantarolava a melodia e, pouco depois, fazia longas pausas silenciosas. Recolhia-se num canto da casa e era todo ausência; Ricardo, estudante de filosofia bastante impulsivo, parecia que ia se queimar de repente, como se tivesse dentro de si uma combustão de ideias e palavras sem fim; Luis Augusto, assim como Ricardo, pura pulsão, vontade de ser a todo custo e experienciar tudo ao mesmo tempo, artista plástico de grande envergadura e sensibilidade; Daniel Fernandes, entre os estudos de bateria de free jazz, as audições intermináveis de temas musicais e as teses grandiloquentes sobre o sentido das coisas, com conexões sugestivas e, digamos assim, pouco verossímeis.

 

Tínhamos muita vontade de pensamento e expressão, mas seguíamos ritmos diferentes em muitos momentos, para depois nos encontrarmos nas farras de bebida e canções, nas noites que nunca acabavam. E que não eram nada bucólicas, pois envolviam longas discussões, geravam discórdias, movimentavam ideias e pulsões, atravessavam sentidos e seguiam um caminho próprio, com encontros e desencontros. E tudo terminava em música e, depois, silêncio, quando vinha o sono e os corpos se deixavam ser entorpecidos pela noite quase manhã, pela aurora e o sol que entrava invasivo pela enorme janela da sala.

 

                                                                                                

                                                                                          * * *

 

Ricardo me chamava “presuntinho” num tom de galhofa e com um certo ciúme do longo tempo que passava com Negro Léo conversando sobre canção popular, movimentos artísticos, teoria da arte e as ciências sociais, já que éramos ambos alunos do IFCS. Havia momentos em que nos isolávamos no seu quarto para conversar e daí as ideias corriam soltas e vinham num ritmo bom e bastante prazeroso, enquanto Daniel tocava a sua insistente bateria de free jazz, treinava alucinadamente, ao som de Thelonious Monk, John Coltrane, Charlie Parkie e assim por diante.

Como se diz em São Paulo, eu costumava “colar” no Negro Léo. Era quem eu sentia mais afinidade, com quem gostava mais de conversar e com quem a conversa ia fundo, descobria que sabia coisas que nem suspeitava e só o sabia por conta das nossas conversas. Negro Léo lia Heidegger, estava interessado em Gadamer, aparecia de repente com algum parágrafo obscuro, alguma frase longa, uns versos, umas palavras, tantas coisas juntas. Pensava bem, tinha e tem um pendor conceitual, é um sujeito que faz constantes exercícios reflexivos, volta-se para si e vai cavando abismos e deixando aparecer fissuras.

Era e é sempre muito significativo os momentos em que podia conversar longas horas com ele, em que ia ao seu quarto sair um pouco dos ruídos da sala e dos corredores da casa. Foi num desses momentos, com a casa já mais em silêncio, que ele me mostrou uma das suas canções mais bonitas e com temática de fundo existencial e, mesmo, metafísico. Abolição. Léo pegou o violão e foi soltando os versos, um a um, com cuidado na hora de dizer as palavras, como a exigir de mim uma atenção mais concentrada no sentido dos versos.

Havia um vínculo com o contexto daquele momento da sua vida (às vezes quando eu sinto muito mesmo/ fico trancado no quarto/ fico só na abolição) e seguia pelo que pode ser visto como uma consciência social bastante reflexiva da sua situação como pessoa e artista (por só ter nascido preto / nasci do preto / nasci do preto). E depois ia para o tema do próprio sentido da identidade pessoal, existencial, social, metafísica, com a presença da negritude bem evidente, misturada aos problemas da definição do si mesmo. Diziam os versos: a questão de ser negro / o escuro e profundo / caminho profundo de si mesmo / pro fundo de si mesmo.

A forma elegante, sóbria e com uma bonita altivez com que apresentou a canção me fez lembrar de uma das muitas conversas que tínhamos e dos planos que fazíamos de atuar no campo cultural brasileiro, no ambiente da produção de canções. Negro Léo mostrava o seu encantamento com o repertório de canções da época de ouro, com as letras, os arranjos, as gravações originais. Passávamos horas e horas ouvindo aquelas canções, através dos meus discos, que havia trazido para a casa, como forma de contribuição pessoal na discoteca do apartamento.

Numa certa ocasião me disse, e não foi só uma vez, que gostava muito da forma elegante da apresentação dos grandes cantores do período. Orlando Silva, Francisco Alves, Mário Reis, Silvio Caldas. A postura no palco, a precisão nos gestos, a limpidez da forma. Era isso. Aquilo o interessava muito. Mesmo o tom grandiloquente na voz, mesmo o que poderia soar antiquado. Negro Léo via nos gestos destes cantores uma relação de respeitabilidade profunda com a canção popular, um amor que se apresentava também como consciência da grandeza dessa linguagem artística.

Quando penso nisso, não consigo deixar de sentir que, no momento de sua execução de Abolição, ele parecia, ao menos para mim, estar realizando involuntariamente este desejo, através da canção de versos densos, temática difícil, entre o existencial e o social.  Através,  mais especialmente, da dignidade com que a cantava, da forma límpida e do senso de medida e depuração da sua performance ali, como se fosse um daqueles cantores que tanto amávamos “nas tardes de fascínio e perseguição” em que vivíamos no bairro.

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PARTE III
Dias de ensaio: o trio extraordinário em Abolição

 Era dia de ensaio. A casa estava preparada, com os móveis limpos, os LPs colocados no lugar, a cozinha organizada. Havíamos também comprado muitas garrafas de cerveja, num bar próximo da casa, na Avenida Suburbana. Conseguimos encher a geladeira, era o suficiente.

Eu tinha acabado de acordar e, como era costume, ido à banca de jornal comprar uma edição de “O Globo” para ler o caderno cultural, em especial os textos do crítico Leonardo Lichote, um dos melhores do país. Como sempre, o sol invadia a sala, com sua janela enorme, sem cortina, como gostava de deixar o Daniel Fernandes, o dono do apartamento.

Depois de lido o jornal, começavam a aparecer na sala Negro Léo e o próprio Daniel, nosso querido jazz Daniel. Conversávamos sobre as matérias, as pequenas resenhas de discos, as apresentações dos shows. Invariavelmente apareciam figuras bem conhecidas do métier carioca. A banda Tono, do baterista Rafael Rocha; a turma do +2, com Moreno Veloso, Kassin e Dômenico Lancelolli. Uma nova entrevista com Caetano Veloso. Com sorte, alguma coisa de São Paulo, Metá Metá, Rodrigo Campos, Rômulo Fróes. Estávamos vivendo, aliás, a onda do Criolo, à época chamado de Criolo Doido.

Lichote tinha, e tem, uma importância fundamental, pois abria espaço no caderno cultural de “O Globo” para os novos artistas da canção que estavam chegando. Era possível sentir algo como um cena que, no entanto, nunca se consolidou. De todo modo, ficávamos lá conversando com atenção e ouvido atento. Nessa época Negro Léo já tinha um conjunto de canções muito interessantes, que vinham sendo feitas desde a adolescência e iam sendo construídas ali mesmo em Abolição, no seu quarto indefectível, organizadíssimo, diferentemente do resto da casa.

Nesse dia, assim como nos dias de ensaio, Negro Léo estava mais atento, concentrado, afiado, com o cenho franzido. Ia apresentar algumas das novas canções ao “Trio extraordinário”, seu segundo grupo, formado pelo violonista Gabriel Ballesté; o baixista Pedro Dantas, um dos maiores baixistas de sua geração; e o nosso jazz Daniel, com sua bateria alucinada de free jazz, seus estudos intermináveis e, para meu desgosto, bastante ruidosos.

Lembro de Negro Léo ter se levantado do sofá, em algum momento das nossas conversas matutinas, e cantado “Singular”, apenas com o estalo dos dedos. A canção tinha um sabor pop, tom jovial, alegria da afirmação do corpo, da juventude mesmo, e da singularidade de si. Veja o tema recorrente do "sujeito", constante em sua obra. Os versos brincavam com a imagem refletida no espelho.

 

O meu espelho tem a dimensão

A dimensão exata pro culto do ego

E pra sentir tensão               

 

E assim, misturado às cigarrilhas, ao café preto, ao pão, ao sol escaldante e sempre invasivo, eu curtia ali cada uma das palavras. Era notório estar diante, ter o privilégio de ver um amigo se constituindo como um cancionista de primeira. Era visível, ponto a ponto, forma a forma, palavra por palavra. Ríamos, Daniel e eu, felizes com aquilo. Depois de “Singular”, veio “Dorival Caymmi”. Isso mesmo, a canção tinha como título o nome de um dos nosso maiores artistas da canção, um compositor de obra pequena e perfeita, das palavras redondas, sábias, corretas. Das imagens poéticas misturadas ao cotidiano. Do mistério do cotidiano, com sua monotonia misturada ao assombro estético, à beleza do som, ao sentido das palavras. A canção de Negro Léo era, é, boníssima, das suas melhores, como eram todas as canções dessa época. Diziam assim os versos:

 

Toda onda

Seja ela ou não extemporânea

Há de resvalar na terra

Na superfície terrestre

Onde guelras reluzem

 

Eu gostava dos ensaios. Era bonito ver aqueles meninos bonitos tocando bem, montando todo o processo dos arranjos das canções. Falando em linguagem cifrada, esotérica, para quem pouco conhece de música, sobre acordes, notas, compassos e passagens de som. Todos eram muito jovens e viam em Negro Léo uma espécie de maestro. Era ele quem os conduzia para os improvisos, revelava os flancos abertos entre os sons, a reverberação das sílabas, o som das palavras. Bebia-se muito. Discutia-se um tanto. Terminávamos invariavelmente num bar da esquina, bebendo ainda mais, fumando cigarros, um atrás do outro, lembrando de histórias da canção brasileira.

Por algum motivo, acho que aqueles meninos gostavam de mim. Eu era tratado com muito respeito e até mesmo deferência. Ficava com meus livros na cozinha, lendo em meio aos sons dos ensaios. Lia de tudo, bebia café, mesmo de noite, e depois ia sôfrego contar a Negro Léo as novas descobertas. Um texto enigmático sobre paganismo de Fernando Pessoa; um poema de algum poeta alemão ou russo obscuro, ou nem tanto. A "solução", ingênua, de uma aporia filosófica.

Com o fim dos ensaios, a saída dos músicos, a noite irrompendo cada vez mais invasiva, e tomando todos os cantos das ruas, dos bares, do nosso apartamento, sentíamos um pequeno vazio. O cotidiano voltava a dar o tom melancólico e monótono. Era a hora de ver o noticiário da televisão. Estávamos saturados de música e canção. Curiosidades tolas de celebridade; humor de gosto duvidoso; casos de crimes, assaltos, tiroteios. Entrevistas com burocratas da política institucional. Com sorte, alguma reprise de programas sobre os artistas que admirávamos. As palavras já não saíam com a mesma vivacidade. Estávamos cansados. Era a hora de esperar vir logo o sono, para poder acordar e, quem o sabe, ter a revelação de uma nova canção de Negro Léo, saída de um espelho singular, do fundo de si mesmo, da explicitação da condição de sua negritude, ou mesmo, das guelras do seu quarto-aquário, o seu quarto de sonhos, que parecia, naquele momento de sua vida, estar envolto num turbilhão.

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PARTE IV
Percorremos ruas: 
o percurso Abolição - Lapa - IFCS e a primeira demo

Percorremos ruas, bares, pequenos palcos. Bebemos noite toda, a noite parecia que nunca acabaria. Negro Léo irradiava uma estranha alegria nesse dia, falava como nunca, muitas palavras. Sorria muito, sua vitalidade nos empolgava a todos. Sabíamos que dali sairiam belas canções, experimentações engenhosas de sons, inteligência e criticidade poética. Tinha, enfim, feito a sua primeira junção de canções numa pequena demo. Não era, não seria ainda o seu primeiro álbum de fato, que viria algum tempo depois e do qual eu mesmo participaria com uma singela letra para uma música exuberante, que apontaria caminhos para a sua obra. Mas não era este ainda o momento.

O primeiro experimento de canções da demo tinha coisas como “Abolição”, “Singular” e “Dorival Caymmi”, já tratadas aqui, nos outros textos. Canções boníssimas, que já prefiguravam o grande artista da canção que viria a se tornar. E tinha o poema musicado de Luisinho, seu amigo de infância, que tínhamos lembrado ali, no início da nossa série. Aquele poema dos versos: Naquelas tardes de fascínio e perseguição / onde o corpo é vento.

O corpo era vento na noite que passamos, tresloucados, pé ante pé, bambeando, como muitas das noites que passaríamos com muitos amigos e pessoas que amamos e que, ai de mim!, nos amam também. O Rio era a Lapa, o Bar da Cachaça, na rua Gomes Freire com a Mem de Sá, que seriam lembradas tempo depois na canção “Action Lekking”. Quem não viveu no Rio, ou não passou algum tempo na cidade, não sabe o que era, o que é, este bar, ali, no coração da Lapa. Um canto escuro, com mesas e cadeiras de plástico na rua, garrafas e garrafas de cerveja, risos histéricos, doses de cachaça de gengibre, que podem ser tão ruins e tão boas ao mesmo tempo. Pessoas, vultos, natureza morta. As noites eram feitas de luminosidade difusa, calçadas e sarjetas sujas, com copos de plástico, restos de maços de cigarros e restos de outras coisas, que nos permitiam ver e sentir as coisas brilharem, nas carreiras sombrias dos bares sombrios e dos sonhos que eram vividos na nervura do real, na realidade como estímulo permanente aos sentidos e as palavras, ai ai, palavras!

 

A sua primeira demo soava como o primeiro experimento de si, a primeira forma de se afirmar e ser aquilo que queria sempre, que sabia sempre que seria. Existiam outras canções além das já mencionadas. “Bárbara” era uma delas, dedicada a uma namorada de longa data, atriz e pessoa finíssima. Nunca é tarde, nunca é demais. Lembro de um pequeno show seu, realizado no “Tempo Glauber”, um espaço dedicado ao grande cineasta brasileiro. Iniciou com um rádio gravador, daqueles antigos, deixado só no palco. Nele, cantava “Singular”, só com o estalar dos dedos. Nós, os que estávamos assistindo ao show, não sabíamos bem o que ocorreria após o ato inusitado. Ouvimos a canção, do início ao fim. Depois disso veio Negro Léo com o Trio Extraordinário, ainda muito tímido, olhando para baixo, talvez se sentindo intimidado diante do público, o pequeno público, quase todo feito de amigos próximos.

Foi-se o primeiro show, ao menos o primeiro que eu vi. Adoramos. O elogiamos depois. Ele parecia desconfiado ainda. Teria sido mesmo bom? Aquelas canções funcionavam? Respondiam bem, de fato, ao que ele perseguia? Eram poucas canções, era uma primeira apresentação para além do que já havia feito com o “Quarteto Joia”, nas noites festivas do IFCS, nas festas que haviam por lá. Na farra boa que os alunos criavam, ou esperavam a oportunidade para criar. O “Quarteto Joia” tinha, entre os integrantes, o poeta Maurício Chamarelli, poeta amplo, de uma turma que via na geração de 1970 um farol. Poeta do delírio e da contenção, e que ficou meu amigo num tempo bom em que morei em Copacabana.

Certo dia, Negro Léo tinha marcado uma reunião com um produtor argentino, Dario. Ele me chamou para ir junto. Lembro de termos feito a reunião em sua casa, no bairro de Santa Tereza. Conversamos muito sobre tudo, sobre todos. Havia quadros grandes e feios na sua sala. Léo dizia coisas sobre as canções que tinha feito. Estava desconfiado. Bebíamos pinga, comíamos quitutes. Ele fazia questão de me levar para estes encontros, sabia que vivíamos juntos, compartilhávamos das ideias, embora eu nada tenha de participação efetiva na feitura das suas canções. Saímos de lá e fomos direto a um bar. Bebemos todas, mais uma vez. Seguimos eufóricos pelas ruas daquele bairro inusitado. Não dava mais para voltar a Abolição. Tínhamos que ficar. Conseguimos dormir na casa de um sujeito estranho, seu amigo.

 

O quarto dele, deste amigo, era todo pintado de negro. As paredes pretas. Quando acordamos, não sabíamos bem onde estávamos. Na verdade, sabíamos, mas o dono da casa tinha sumido, não estava mais no quarto. Nos levantamos. Fomos até a saída do quarto. Nada, o rapaz havia sumido mesmo. Seguimos pelos cômodos: uma senhora caminhando com uma bandeja na mão nos olhava indiferente. Quem éramos, o que estávamos fazendo ali, nada a perturbava. Parecia que não nos via. Seguimos. Descemos escadas, chegamos à porta. Enfim, era possível sair. Mas não foi bem assim que a coisa se deu. Havia cachorros que nos davam medo. Latiam o tempo todo, ameaçavam avançar sobre nós. Voltamos. Continuamos à procura. Deveria haver uma saída melhor. Estranhos quadros na parede, volumes de cores sem forma, rugosidades disformes, logo mais à frente, uma figura algo sinistra passando e nos olhando indiferente, como se não estivesse nos vendo de fato. Enfim, por acaso, numa sorte, encontramos o sujeito. Sentado no sofá da sala, assistindo desenho animado. Parecia confortável. Nos percebeu e nos levou à porta. Segurou os cães, nos deixou passar, saímos. Já na rua, rimos de toda a situação. Agora tínhamos que seguir à Central do Brasil para pegar uma das vãs sinistras que faziam ponto por lá, e nos levaria à Abolição.

 

Tinha sido uma noite louca, com bebedeiras, carreiras de brilho insuspeito, falas intermináveis, canções antigas. Mas estávamos em casa, enfim. Fomos dormir de novo, na manhã já tarde. A manhã mais manhã que a manhã. Léo seguiu para o seu quarto. Fui para o meu. O momento era o de superar a ressaca, que viria com toda força. E veio. Já acordados, com Daniel conosco, começava ali um novo dia, embora fosse noite. Novo dia para Negro Léo, que já previa, ou parecia prever, a necessidade de dar um salto, fazer de fato o que seria o seu primeiro disco, criar novos discos e novos sons. Voluntária ou involuntariamente, “The Newspeak”, seu primeiro disco, estava sendo gestado ali, naqueles momentos de sombra após noites de euforia e alumbramento, e dias de tumulto e alegria. O percurso Abolição - IFCS - Lapa teria fim, como tudo na vida, inclusive aquelas noites que pareciam não ter fim.

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PARTE V

Barato total

Consigo me lembrar de cada canto daquele apartamento. Sei reconhecer os traços bem definidos do chão de taco da sala e dos quartos. Posso me lembrar do chão de azulejo da cozinha, das bitucas de cigarro jogadas, da poeira concentrada no canto das paredes, do desenho feio em um dos quartos, da porta da sala, sempre entreaberta, a espera da entrada dos músicos, artistas e dos amigos e amigas em comum, do corredor estreito até a janela que dava para o apartamento ao lado. 


Se me esforçar mais um pouco sou capaz até de reavivar os ruídos das falas dos vizinhos, o incômodo da senhora com o barulho da bateria de free jazz do Daniel; senhora que nos parecia tão cândida, mas que chegou a colocar o apartamento em que morávamos como garantia para conseguir empréstimos com agiotas que, diga-se de passagem, chegaram a nos ligar ameaçando destruir o próprio apartamento, e nos destruir... Como deve imaginar o gentil leitor ou leitora dessa série, são muitas histórias que pululam na memória dos que passaram e, no meu caso e de Negro Léo, ficaram alguns anos por Abolição. 


Um dia, ou melhor, numa noite, perto da madrugada, estava eu na sala, ouvindo canções em modo menor, tomando um conhaque de alcatrão, aqueles que depois nos levam a ter dores de cabeça intermináveis nos dias seguintes, e que só terminam quando voltamos a tomá-lo na próxima noite e assim vamos nos acostumando. Assim, no dia, ou noite, na verdade, noite mesmo, alta noite, madrugada, estava eu na sala, ouvindo minhas canções e, de repente, chega Negro Léo algo atônito, agitado, muito movimentado. Conversa comigo rapidamente. Anda pela cozinha. Prepara algo para comer. Sorve, quer dizer, toma uma copo de água e, num instante, se direciona a mim e pede para ficar sozinho na sala. Entendo, vejo nele um ar de urgência, um leve desespero, e sigo para o meu quarto, na verdade, o canto estreito em que dormia naquele apartamento. 


Mas, ainda que recolhido, fico atento para a situação. Sei que, nestes dias, Negro Léo parece estar carregado de tempestades, raios, o que o seja, precisa tirar de si, materializar aquele incômodo, os cortes que atravessam a sua alma, a fissura que vai se abrindo no seu corpo. Então faz aquilo tornar-se som, experimentos musicais, ou mesmo audições de discos, invariavelmente, naquela altura, de alguns dos seus músicos preferidos de jazz: Thelonious Monk, Charlie Parker, Bill Evans, John Coltrane, entre tantos. 


Nessa noite, em que me pedira para ficar sozinho na sala, como em outras que lembro ter vivido, começavam a aparecem os sons, as tramas complexas de harmonias que só raramente se condensavam em melodias fáceis de ser retidas como belezas amenas; na verdade, parecia que a movimentação das harmonias não conseguiam encontrar centro, precisavam causar ruídos, sobressaltos, alterar a lógica que se esperava como consequência da gradação sonora. Precisavam nos causar alguma vertigem, como se fossem gritos, e é isso mesmo, lembro agora, como se fossem gritos, asperezas, impurezas da forma. Vinham sons da noite aguda do apartamento, sons disparatados, em alvoroço, cujo único limite eram mesmo os materiais, físicos, da própria sala. 


Não sei o que fazia ali Negro Léo, se dançava, gesticulava, se estava apenas sentado, deitado, no sofá, no chão, não sei, nunca saberei. Tudo que vinha eram sons, formas se construindo, raramente canções, embora também pudesse havê-las. Aqueles versos do Jards Macalé que falam em “farinha do desprezo”, se me lembro bem; alguma coisa ou outra dos discos do Gil mais experimentais; por vezes, um samba de Wilson Batista que, repentinamente, aparecia atravessando tudo. 


Num determinado momento já não conseguia distinguir o que era criação autoral do que vinha da audição dos discos. Ficava um espaço indiferenciado. Imaginava, ainda como hoje imagino, que começava ali a criação de formas mais propriamente, que era momento em que o violão era o dele, a massa sonora era a que ele criava, os volteios do canto também eram os deles. Já não se tratava do recolhimento no seu quarto, onde ia fazer as canções da sua primeira demo. Aquelas grandes canções que pareciam ainda ser expressões subjetivas de uma consciência que sabia condensar as impressões, as emoções pessoais, o modo de ser e assim por diante. Ali não era isso que aparecia a mim, mas uma outra coisa.  Uma trama das formas, um experimento da movimentação de massas sonoras, que envolviam o violão, o teclado, as audições dos discos, o próprio contorno da sala, do espaço físico, e a inquietude sentida no corpo, na alma, nos olhos bem abertos. 


Coincidentemente ou não, essas experimentações viriam no seu primeiro álbum de fato, o primeiro lançado, cujo título vinha de uma parceria nossa, “The Newspeak”, e cujas canções contam muitos casos que também presenciei, alguns que fazem encontrar outros lugares da cidade, já não tão associados a Abolição e ao subúrbio carioca. Será o momento em que Negro Léo se mudará para Botafogo, na zona sul do Rio, e acompanhará uma movimentação bem interessante da música feita nessa cidade, em casas como Áudio Rebel, que abarcou uma cena de artistas radicalmente experimentais durante um bom tempo, e continua a abarcar, a ponto de ter lançado um selo musical que remete aos seus eventos e às suas programações da época: o QTV, sigla para Quintavant. 


Mas havia uma canção que lembro ser tocada frequente no apartamento de Abolição, pela manhã, quando Negro Léo acordava: Barato Total, do Gilberto Gil, na voz de Gal Costa. Talvez já tendo espantado os demônios das noites acesas, das madrugadas insones, da construção de massas sonoras como respostas aos cortes, às fraturas, às fissuras e aparentando alguma calmaria. Calmaria que neutralizava o incômodo que vinha da sua vida pessoal, dos problemas familiares, dos encontros e desencontros amorosos, do seu senso de historicidade, da sua relação com a cidade, do seu pensamento, da música que habitava os tantos silêncios em que nutria o desejo de expressar a sua vocação de artista da canção com melhores condições. Sabia o que era, o que queria ser e, o que é mais importante, o que podia ser. Sabia também como contribuiria com o sentido das canções e das experimentações musicais no Brasil, o lugar que poderia ocupar, como enfrentaria o que deveria ser enfrentado; como amaria e cultivaria o que era precisa ser amado e cultivado.  


E saber disso o permitia ter, após noites tumultuosas como aquela, algum tipo de contentamento, como o que aparecia nesta canção. Barato total é uma ode à alegria, à felicidade, às cores vivas do real, às boas companhias, à presença da vida como algo a se comemorar, a se festejar. É uma ode ao momento de alegria, de se saber estar contente. Não foram poucos os momentos de melancolia que passamos, tristeza profunda, sensação de estar fora do ambiente cultural, estético, do debate crítico do país, da cidade, por estarmos em Abolição, por nos situarmos no subúrbio carioca, tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante da zona sul carioca, por onde os artistas e críticos passavam e ganhavam notoriedade, saíam nos jornais, eram comemorados pelas festas cafonas das coberturas de ipanema, copacabana e por aí vai. 


Dizíamos, em tom de brincadeira, mas com um quê de realidade, que não tínhamos futuro. Seria impossível sonhar com qualquer atenção da crítica de cultura no período ao que vínhamos fazendo. Era como se não existíssemos, nem mesmo para o bairro. Estavam ali um músico de free jazz com grandes ambições, mas frustrado por não poder ser aquilo que sabia que era; um crítico que começava a despertar para o campo cultural, mas que sabia o quão restrito era esse mesmo campo e que dificilmente haveria espaço real para que apresentasse suas ideias; e Negro Léo, um artista da canção e músico experimental de grande envergadura, já ciente das suas responsabilidades como criador de formas, mas que não parecia ter o eco que deveria ter no início de sua formação. 


Mas que o fosse. Muita coisa mudou de lá pra cá. Fomos empurrando as coisas, entrando sem pedir licença e fazendo nossas algaravias. O mais interessante e talentoso entre nós era mesmo Negro Léo, e sabíamos muito bem disso. Que os encontros em Abolição, a morada neste bairro tão agradável quanto melancólico, com suas belezas de veludo e noites subterrâneas, tenha o conduzido a ser o que é hoje, com uma obra já consolidada e ainda em movimento, é motivo mais do que suficiente para que eu também sinta um barato total por ter participado daquele momento da sua formação e agora ter tido a coragem de escrever sobre este período. 


Por conta disso, termino este primeiro capítulo da série sobre a sua obra, todo concentrado em Abolição, com os versos dessa canção que talvez sejam os que melhor sintetizam as nossas vivências no bairro naqueles anos tão tumultuosos quanto felizes, tão duros quanto intensos, tão vulneráveis quanto cheio de potencialidades que vieram a se confirmar com o tempo

Quando a gente tá contente
Nem pensar que está contente
Nem pensar que está contente
A gente quer
Nem pensar a gente quer
A gente quer, a gente quer
A gente quer é viver

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