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Leo Cavalcanti - Religar (2010)
por Marcos Lacerda


Religar (2010) é um álbum extremamente reflexivo, com uma riqueza poética e um esmero muito perceptível no uso da palavra para fazer canção. Um disco que apresenta uma tensão entre as palavras, ou melhor, a poética da palavra cantada e o existente, os diversos Outros que estão fora de nós, mas que nos atravessam também de diferentes maneiras.

Em Chuvarada (Com Tatá Aeroplano), uma das mais surpreendentes canções de Léo Cavalcanti, o sujeito está diante de uma figura complexa, encantadora e terrível ao mesmo tempo, cujos sentidos lhe fogem (No cerne do seu ser chove / sentidos que me escorrem pelas mãos), cuja força e beleza tem algo de inapreensível, que causa encantamento e assombro (Quando chega do nada / traz pra todo escuro luzes desvairadas) e que se situa numa zona imprecisa e potente (seu feminino é terrível / seu masculino é mouro nos seus ancestrais). Tamanha força, potência e beleza vem acompanhada de uma indiferença cruel (anuvia minha mente / é sempre indiferente / aos meus velhos credos / me acolhe em consolos / e me expulsa aos berros / tão cruéis e térreos), quase como se fosse uma entidade “sobre-humana” fazendo o sujeito, antes refugiado no afago, voltar ao domínio áspero do real.

É uma figura complexa, ambígua, cuja potência atrai e repele ao mesmo tempo, cuja presença se dá com uma intensidade imensa que faz com que o sujeito que a deseja fique transtornado, pois a deseja mas não pode alcançá-la (Eu tenho vontade / mas não tenho vocação / pra viver de chuvarada). Viver de chuvarada, a meu ver, significa viver com essa intensidade, com essa capacidade de ser consoladora e cruel ao mesmo tempo, com essa força e potência que a faz indiferente a “velhos credos”, ter a capacidade de trazer luzes desvairadas, instaurar beleza e novidade, mas beleza que é terrível e inquieta, a ponto de o sujeito dizer em tom de lamento e resignação (eu não quero piedade / eu só quero compaixão / por meu chão).

Esta mesma figura aparece em Inalcançável Você, com o seu encantamento terrível, sedutora e cruel, que sugere uma expansão para o sujeito e ao mesmo tempo é tão forte e bela que pode destruir este mesmo sujeito, ao enfraquecê-lo (Boquiaberto me travo / por me ver / a te admirar demais / eis que fico fraco…). Esta despotencialização chega ao ponto da inação, tamanho deslumbre diante deste outro que aparece como força e potência plena, inalcançável ( tudo se faz tão perverso / qualquer impulso meu dilui-se no ar / do igual pra igual, espontâneo / perde o espaço pro desejo de acertar). E o desejo de estar perto e criar algum tipo de proximidade e equivalência leva a um distanciamento desconsolador (e quanto mais espero / mais me nego / mais me faço afastar / eu inventei / o inalcançável você / me fiz de escravo do meu medo de ser).

Em Soldado, temos uma crítica sofisticada e sutil às formas como o capitalismo consegue capturar o tempo, o instante de contemplação, reflexão ou gozo existencial despreocupado com “produtividade” ou “progresso” que todos deveríamos reivindicar e jamais abrir mão (se me preocupo / só com os frutos / que talvez eu colherei / não perceberei o meu caminho / e todo amor eu desperdiçarei), especialmente o gozo do instante, do presente, daquilo que não pode ser capturado pela produção (meu soldado precisa sossegar / pra que eu possa no presente repousar). A promessa de felicidade no futuro, que exige uma economia e uma contenção psíquica, além de uma auto-regulação e controle permanente da pulsão, é colocada em xeque, questionada de um modo intrigante (Vejo meu trabalho / tão suado / nunca me dediquei tanto / Paro, questiono: / meu esforço / é sincero ou um engano?Se o presente se alimenta de um futuro vão / toda a minha existência cai na ilusão).

A canção mostra também como há no capitalismo um permanente esvaziamento das subjetividades, reduzidas à ações sem sentido, pulsões e pulsações vazias, projeções e planejamentos que não se sabe para quê ou para quem. Os versos iniciais se repetem no final e são comoventes. O personagem da canção, num tom sempre reflexivo, indagativo e angustiante, diz num monólogo interior (fico preocupado / com minha casa / meu sustento e meu salário / perco referência / para onde, / para quem que eu trabalho?) e como num eco a indagação se repete e ganha cada vez mais contundência (Para quem que eu trabalho?). Aqui o processo de alienação se realiza plenamente. O Soldado do título da canção é tanto o soldado que age para manter a “ordem”, e que se situa num espaço social exteriorizado, quanto o processo de internalização das normas, valores e do ethos capitalista nos sujeitos (Olho pro soldado / lá na rua / destruindo a violência / Penso no soldado / de mim mesmo / que me prende a consciência…).

Em Dissabor a complexidade do ritmo interno dos versos vai desenhando uma série de situações inusitadas. O tema comum do amor abandonado se transforma em belas, inventivas e incomuns imagens poéticas, acompanhada de uma sonoridade não menos inventiva, bela e incomum (Você diz que acabou / mas na verdade pra mim / mal começou / foi-se embora assim / trazendo dissabor / pro meu paladar de amor / junto com um gosto seu / que não tem fim / destes que não há razão nem perdão / se pudesse ser só ilusão). A desilusão amorosa vai se desfiando ponto por ponto, e a queixa ao amante se transforma em poética com imaginação virtuosa e ritmo lancinante (você me colocou / onde só vive pinguim / dentro do congelador / nada mais já presta em mim / depois de tanto frio, depois de tanta dor / ainda guardo enfim / meu mal de amor / você cheira a jasmim / isso me traz furor / meu corpo dói como madeira / furada toda por cupim / tenho que fazer dedetização / te matar / do meu coração).

Em A Tal da Paciência, o compositor faz uma autocrítica à sua exasperação, ansiedade, necessidade de falar, dizer, devorar com a palavra poética o mundo todo, a pressa de ser, a entrega imediata, querer tudo e todos agora (Minhas vontades sempre têm urgência / de qualquer jeito se realizar / por isso eu sempre caio na demência / e o tempo acaba por me atropelar / ...tem coisas que somente a experiência / por mil processos vão proporcionar / é uma ilusão querer pular vivência / pra ter sucesso antes de errar). No entanto, resignado, termina por assumir a sua condição de poeta da palavra e do verbo que precisa se dizer amplamente e de um modo expansivo (mas será que a tal da paciência / cabe no meu paladar / tenho cá minha gula de eloquência / que quer o mundo inteiro devorar). E temos ainda, entre outras, a deliciosa Frenesi de Otário, uma grande canção com um lirismo ingênuo, comovente e contundente.

Ouça Religar, de Leo Cavalcanti:

youtube: 

https://www.youtube.com/watch?v=n2fEoKo016E&list=PL4128DE5F1C0C0D24
 

spotify: 

https://open.spotify.com/album/0BET7q1m7ODYbMDy5ssAX6

 

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