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Junior Almeida - Nu (2018)

por Alexandre Marzullo

Nu é o quinto disco do cantor e compositor Júnior Almeida, lançado em 2019 pela Dubas Música. Júnior Almeida é um compositor que pertence a uma estirpe especial de criadores, uma certa escola Caymmiana, que preza pela afetuosa ourivesaria da canção. De imediato, alinho outros nomes dessa  gloriosa e serena confraria: o letrista Ronaldo Bastos; o cantor e compositor Antonio Paquito; o cantor, compositor e poeta Arthur Nogueira. Existem outros, certamente. Mas é Junior Almeida quem sintetiza o lume poético que ilumina o ofício do compositor, quando afirma que "compor é um verbo íntimo"; de fato, ouvir suas canções é comungar de uma intimidade que, sob todos os ângulos, se apresenta amorosa ao que lhe torna; faz lembrar o verso de Novalis, "o sentido é sempre amoroso." E é como consta: o álbum Nu repercute esse especial convite, amoroso e íntimo, ao longo de onze faixas, atravessadas pela beleza em suas mais variadas matizes, paletas e timbres poéticos.

Construído sobre a voz de Júnior, com arranjos minimalistas e condensados nas cordas de violas, violões e guitarras, e ressaltando uma quase ausência de percussões, o que se repara desde o primeiro momento é que Nu é um álbum que exalta a delicadeza como potência poética da maior grandeza. O efeito é imediato sobre o ouvinte. Contando com participações de Zeca Baleiro e Martn'ália, o disco abre com a pungente canção-título, entoada em acappella pelo seu autor. Os belos versos da faixa, de autoria de Fernando Fiuza, cristalizam a estética inteira que norteará o álbum; atuam, sem dúvidas, como uma declaração de poética, isto é, como "o ponto de vista pensante" - o lugar de foro, ou ainda, o conjunto de ambiências do artista: sua própria visão musical, em suma. Dada a sua importância, disponibilizo os versos na íntegra abaixo:

Nu (Junior Almeida / Fernando Fiuza)

Nu numa nuvem de notas

Nu numa chuva de prata

Nu numa mata

Nu que se mostra

Desde a entrada

 

Nu, que é mais claro e preciso

Nu, que é mais raro e barato

Leve e sensato

Que é mais difícil

E delicado

 

Nu é o peixe

Nu quem se deixe

Num chão sem lastro

Nu é quem nasce

Nu quem se lava

Nu quem se deita

Nu quem se safa

 

Nu é o sertão

Mesmo florido

Nu seu umbigo

Nua canção

Está tudo exposto e entregue, com generosidade e melodia: nua canção é a canção que floresce em sertões íntimos, como se Junior Almeida estivesse nos sussurrando: olhe com mais calma, meu amigo, minha amiga. E assim, mais difícil e delicado, como na faixa O Sertão Cicatriza, o sertão mesmo florido desabrocha ao longo do disco - e também ensina -, desenhando uma visão poética calcada na experiência humana, mas sobretudo dentro daquilo que ela possui de mais digno e engrandecedor: a própria vida, isto é, a vivência dentro do sistema maior da natureza. Consequentemente, estarão inclusos nisso todos os amores e todas as dores - não há, realmente, uma dissociação entre uns e outros. Mas lembrando sempre que é uma vivência permeada pelo afeto, e o afeto embeleza; justifica o percurso. 

As músicas de Junior Almeida percorrem o país, seja na sua voz, seja na voz de outros intérpretes. No entanto, o cantor e compositor é sediado em sua cidade natal, Maceió, capital de Alagoas, estado brasileiro que, não por acaso, possui uma rica, fertilíssima relação com a arte poética e musical. Não só Almeida é conterrâneo de uma figura do porte de Djavan, como Alagoas viu surgir - e honra, até hoje - expoentes absolutos da poesia e da literatura brasileiras (poderíamos até dizer, do mundo): nomes como Jorge de Lima (1895 - 1952), Graciliano Ramos (1892 - 1953), Lêdo Ivo (1924 - 2012), dentre outros, debruçaram-se com potência sobre os grandes e eternos temas da condição humana. Optando pelo formato-canção, Junior Almeida repercute a herança cultural alagoana - que é, também, a herança cultural brasileira - com um sentimento de contemplação que faz justiça à fina flor de tamanha alta poesia, seja como autor, seja como intérprete; exemplo inequívoco do que digo está na faixa Tênue, composta por Gabriel Almeida, seu filho. Junior valoriza o lirismo e a imagética de Tênue pelo uso de repetições, que reforçam a sensualidade marinha dos versos:

(...)

Descobre a chuva, cobre a vulva

Traz de encontro a tua luz

Os astros frios em caminhos nus

Areia fria, o mar

Areia fria, o mar

Quem também carrega, e muito bem, a tocha dos versos em Nu é o já citado poeta Fernando Fiuza. O investimento na síntese e na imagem total de uma frase curta é bem sucedido; tome-se por exemplo os apontamentos, rápidos, estacantes, do blues Deusinho Terrível, que Almeida argutamente musica em cadência lenta, evocando pelo canto o "agudo amor e lento desmaio", na expressão de Clarice Lispector. É a quarta faixa do álbum: que fazer do amor / deusinho terrível / monstrinho curtido / em mel e vinagre / amá-lo impossível / matá-lo é morrer / vivê-lo é sofrer / fazê-lo, quem sabe? Outra parceria contundente da dupla, além da já citada O Sertão Cicatriza (o sertão não suporta / quem só pensa em ser fita / e não sabe ser corda) é a pungente Duração, reflexiva em seus versos como um canção de retirada, apontando o desejo de ficar: quase nunca me despeço / dos lugares onde vou / deixo portas entreabertas / esqueço disco e favor. Sem esquecer, claro, de Trela, com participação de Zeca Baleiro.

Além de Fiúza, Junior também compõe com Wado, em Quarto Sem Porta (com a iluminada participação de Mart'nália) e Cris Braun, na faixa final, O Tempo Para o Nada - canção que fecha o álbum com a entoação em boca chiusa, mas que apesar dos murmúrios, também traz versos de alta voltagem e limpidez formal: assim correm os rios / e também sai a lua nos dias de lua / e também o sol nos dias de sol. Mas que fique claro, contudo, que Junior Almeida também escreve de próprio punho, e com desenvoltura, como demonstram faixas como Seu Perdão (há de saber que a vida erra / no agasalho das palavras / que tanto frias, quanto brasas / só na paixão que se revelam) e Coisas Que Não Soam, um complemento à vocação poética expressa em Nu (oh flor do meu asfalto / se foste a minha reza / meu gozo e meu cansaço / não me construo sobre coisas que não soam / não me construo sobre olhos que não tenham paz).

 

Nessa evocação à delicadeza que orienta o disco, é coerente (talvez a palavra seja: recorrente) a sensação de uma aquarela sonora (não por acaso, o encarte é repleto de belas ilustrações, em aquarela e sépia, do artista Davi Jesus do Nascimento). É quase como se o artista estivesse nos apontando utilizar o silêncio como sua matéria prima - numa analogia, o branco do papel onde se derrama a tinta aquarelada - em correspondência e preenchimento aos vãos das cordas. E sobre tal cama de arpejos e acordes, a voz de Júnior assume o protagonismo de demonstrar os matizes possíveis e diferentes dimensões emocionais de seus versos. Com uma tranquilidade apaziguadora e intimista em sua voz, o canto de Júnior possui uma pluralidade interessante: pleno de reflexão, é também um canto de firmeza e alegria. Vulnerabilidade e virilidade.

Justamente por seu caráter de unidade, tanto na temática quanto na abordagem de suas canções, Nu é um álbum construído a partir de uma ideia de uma atemporalidade para o que toca a experiência humana. Para se atingir a delicadeza, demanda-se uma generosidade acima de qualquer suspeita, pois é preciso ter muito a oferecer para entregar-se delicado. E eis que os versos, as melodias, enfim, as canções de Júnior Almeida, são obras de delicadeza: de extrema generosidade.

Ouça Nu, de Junior Almeida:

https://open.spotify.com/album/4k5RS52D848Akd42IHcbOI

(301) Nu - Júnior Almeida - YouTube 

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