UMA CANÇÃO clássicos e contemporâneos
editores:
Marcos Lacerda & Alexandre Marzullo
Juliano Holanda - Por Onde as Casas Andam Em Silêncio (2021)
por Alexandre Marzullo
Para que servem poetas em tempo de indigência? Quem faz a pergunta é F. Hölderlin, em seu poema Pão e Vinho, escrito em finais do século XVIII. É uma pergunta impressionante, porque trágica: parece não perder a triste relevância. Hölderlin eventualmente acabaria seus dias no resguardo de uma torre, isolado do mundo e acometido por instabilidades psíquicas; seu próprio destino, de certa forma, desenha uma persistente figura para o poeta como um sujeito sem-lugar, sin.gular e visionário. É assim que, já no século XX, tomando a questão e a loucura de Hölderlin como um objeto só, Roberto Piva, em "Poema para Bivar", assinala a atualidade da questão enunciada pelo frére alemão (mas agora em um contexto brasileiro):
...& a fome a galope
é o Sol mudo a
Lua paralítica
Drácula janta na
Esquina
E para que ser poeta
em tempos de penúria? Exclama
Hölderlin adoidado (...)
Pergunto: o que faz uma questão atravessar, dessa maneira, séculos e culturas distintas, sem perder o próprio gume? E respondo: seu próprio objeto: a perpetuidade da condição existencial humana, e seu fundamento na angústia. O que significa dizer que, mais do que responder categoricamente (isto é, "de uma vez por todas") à pergunta de Hölderlin, é preciso respondê-la continuamente, respondê-la como quem existe, ou melhor: como quem existe porque deseja existir.
Justamente, Por Onde as Casas Andam em Silêncio é uma resposta possível, contundente e lírica. O álbum de Juliano Holanda, lançado pela Dubas Música em fevereiro de 2021, foi todo registrado e concebido durante a pandemia, que se tornou o lugar-comum dos debates públicos e particulares brasileiros desde março de 2020. Ora bem, não é difícil perceber como o contexto pandêmico enfatiza a angústia da questão com que abri este texto; não é por acaso, então, que o disco de Juliano Holanda a todo momento realize uma espécie de endereçamento daquela atmosfera, e daquele estado de sentimentos e sensações:
Há algo de calmo e de raso nesse leito profundo
Tem dias que o sal atravessa as paredes do mundo
A água em desnível acentua o relevo das horas
E um traço contínuo vai misturando o gosto das auroras
Roa e rebento
Às vezes a vida é uma estrada sem acostamento
Tem dias que o sol estilhaça as vidraças da sala
Eu tenho tentado escutar as palavras que você não fala
O cabide de roupas do quarto parece um espantalho
É só mais um ato falho
O demônio lunático pousa sobre a catedral em chamas
Aprendi a reconhecer a serpente pelo dourado das escamas
Metade das coisas que ele diz não faz o menor sentido
E a outra metade, eu preferia mesmo era nem ter ouvido
Já era pra ter saído
Mas há algo de flor e de asfalto nesses tempos encardidos
A peça já está no seu terceiro ato e os atores estão bem perdidos
Não sei em que altura da estrada a gente perdeu a poesia
Encontrei a metáfora mais clara que hoje me caberia
Pra evitar a azia
Me vesti com as paredes de casa enquanto o lobo soprava lá fora
Tem dias que o tempo desgarra, e tem tempos que o dia demora
Abri a janela sabendo que o vento não me derrubaria
Eu tenho tentado fugir das notícias do dia
Haja terapia
Haja Terapia (Juliano Holanda; 2ª faixa do disco Por Onde as Casas Andam em Silêncio)
Na quietude imprevista dos dias pandêmicos, faixa a faixa, o disco se revela como uma obra de concentração, atenta ao "som ao redor". As composições de Juliano Holanda se permitem acontecer, assim, como pequenos exercícios de catarse, com grande respeito por tudo aquilo que é íntimo, tudo aquilo que é belo e digno e, principalmente, tudo aquilo que está ferido. Há um olhar dedicado aos lutos, aos calados à força ou à peste. E o que não está dito, se subscreve. Daí o silêncio das casas, por onde repercute - seja em murmúrio ou não - a canção.
Mas a seu tempo, o próprio movimento deste olhar também descreve um "vir-a-ser" para o artista em seu álbum - um dar a voz a si próprio, sem excluir o silêncio; encantar a vida e defenestrar os canalhas, sem perturbar o luto. E se o luto reconfigura a realidade, semantiza a perda e oferece o vazio, cabe ao poeta atravessá-lo pela artesania da palavra, com uma convergência entre sua elaboração poética e a contemplação do mundo. Em Juliano Holanda, a resultante desta operação é uma especie de micropolítica poética do afeto, com abundantes exemplos ao longo do disco:
As pessoas estão loucas
Tentando atingir o alvo
Se perdem nas próprias bocas
Sem nunca chegar a salvo
Se estranhando e babando de raiva
Vão roendo as unhas e os dedos
Mastigando os pedaços da alma
Cortando o doce com a faca
Que tinham cortado o queijo
Aprisionadas no esconderijo
Enquanto o tempo vira
Vão vivendo nos seus dilúvios
As pessoas e os seus delírios...
As Pessoas (Juliano Holanda; 7ª faixa do disco Por Onde as Casas Andam em Silêncio)
A verve crítica de suas letras, é claro, no fundo, é também uma vontade de interlocução; um desejo do outro. E como um movimento pendular - sob o eixo da atenção ao detalhe, da reflexão incessante sobre sua própria capacidade de atuação no mundo - Holanda passa da acérbica poesia ao encantamento pelo amor. E tudo convém. E é o que se verifica na canção "Daqui da Lua", onde Juliano Holanda emprega um olhar com qualidade mais terna - aliás, trata-se de uma das canções mais belas e pungentes do disco:
Eu precisei me afastar um pouco pra poder te ver
Só não sabia que um dia iria tão longe assim
Como eu queria que você viesse
Como eu queria que você me visse
Daqui da lua até que não pareço tão ruim
(...)
A gravidade não me põe pra baixo
Eu te avisei que um dia partirira
Aqui na lua ando com saudades de mim
Resta ressaltar a concepção sonora do álbum, totalmente elaborado a partir da voz de Juliano Holanda, e de seu baixo; o próprio artista elaborou seus arranjos, em variados timbres e técnicas. Tal uso superlativo do baixo sustenta e unifica Por Onde As Casas Andam Em Silêncio; reitera a poética do artista, envelopando seus versos e suas entoações com uma ambiência ao mesmo tempo grave, crítica e amorosa. Tal ênfase no baixo, instrumento primeiro de Holanda, pode muito bem ser pensada como uma metáfora para um retorno às origens. E em tal pendor, as associações irrompem: mais do que pulso, impulso. Pluralidades de uma mesma convicção: paixão e cuidado - testemunho, a nota de ouro. E eis como o francamente belo álbum encerra:
Se te qubrarem ondas
E construírem altares
Se te vendarem olhos
E te pregarem cruzes
Se te ofertarem flores
Se te quiserem Cristo
Cuidem-se
Cuidem dos seus
Amigos
Cuidado (Juliano Holanda; 8ª faixa de Por Onde As Casas Andam Em Silêncio)
(a resposta de Hölderlin à própria pergunta:
(...)
nem sei dizer, para que servem poetas em tempo de indigência?
mas eles são, dizes, como sacerdotes santos do deus do vinho
que em noite santa vagueavam de terra a terra.)
Ouça Por Onde As Casas Andam Em Silêncio:
https://youtube.com/playlist?list=PLQoPKyz-KGWfIOV5bQd491vZricbZTHgE
https://open.spotify.com/album/2ycDdSoLlK1DBVqNRln5Dq?si=D_1ud1dwQaKsxRF9L6hlkg
