UMA CANÇÃO clássicos e contemporâneos
editores:
Marcos Lacerda & Alexandre Marzullo
Delta Estácio Blues (2021), Juçara Marçal
por Alexandre Marzullo
...encarnada fúria, delta do amanhã
Juçara Marçal é um acontecimento. E Delta Estácio Blues não foge à toada; cumpre e satisfaz a longa espera desde Encarnado, seu primeiro disco solo, e entrega mais, aponta outros horizontes. É um disco do amanhã.
"Vi de Relance a Coroa" diz tudo. É o vislumbre, a aparição do numinoso, que não obedece à expectativa do ouvinte: traz seu próprio timbre, sua própria voz. A Igreja Eterna de Messiaen e a poesia de Alice Oswald, escavando a língua grega em busca da enárgeia de Homero; muito além, em Juçara Marçal um Brasil inteiro, repintando a liberdade de Delacroix, pulso nervoso, a cor vibra. Contrastes, verde-carmeSIM: serão outros os ideias, será outra a dinastia. Delta Estácio Blues abre com sinistra gravidade e alegria; abre com maestria. Vi de relance a coroa.
A segunda faixa é um plano de batalha: é absolutamente imperativo que se destrocem os lugares-comuns, as palavras a que costumávamos recorrer. "Sem Cais" é o sinal de uma deriva eterna; queres mudar o mundo? Prepara-te para um mar sem dimensões mensuráveis. Há uma andaimaria de sons que acumulam-se em ritmo, vozes texturizam o deslocamento, sintetizadores, trompetes e aço, não importa: não tem cais onde hei de parar.
As duas faixas absolutamente impactantes nos trazem à faixa-título, "Delta Estácio Blues", composta por Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Juçara Marçal. Convergindo o blues norte-americano com a matriz do samba, Juçara demonstra uma força musical assombrosa, conhecimento de causa a atravessar os ritmos, os lodaçais e campos de algodão, os quilombos e as favelas, as avenidas paulistas, brasileiras rodovias. Canções sobre canções sobre canções. É preciso ter certa ousadia prometeica, e "Ladra", faixa seguinte, escrita por Tulipa Ruiz, conecta os pontos. A ode à ladra inominada, quase eletroacústica e tão melódica, faz lembrar a marginalidade heroica cantada por Helio Oiticica – dos penetráveis aos parangolés e cosmococas.
Antonin Artaud foi quem melhor disse: tudo o que age é uma crueldade. Se é assim, então que sejamos cruéis, na medida do poético que adequava à Artaud e à nossa própria contemporaneidade: face a face com o destino, este é o sinal de "Crash", a contundente faixa seguinte, composição de Rodrigo Ogi e que foi, não à toa, o grande single do álbum. Importante dizer o quanto a voz de Juçara é uma liderança, e de uma versátil, extraordinária categoria; em todas as faixas, detém os nuances e a emissão perfeita, em trova e treva, e luz e doçura. Sabe as fronteiras do narrar e do lançar a palavra, e atrai sentidos ainda inauditos, que se anunciam no entonação da artista.
A contundência do álbum apenas cresce; fosse um EP, até aqui, já seria obra-prima. Mas há mais extraordinários querendo luz, como a faixa Baleia, parceria com outra força da canção contemporânea, Maria Beraldo. Talvez a canção mais impressionante da já potente coleção de faixas, Baleia reúne a agressividade, o erotismo e as profundas camadas de timbres, inusitados elementos percussivos, um peso inacreditável e um inacreditável belo. Faz lembrar Santo Agostinho – perdoe-me o excesso de citações, leitor; escrevo de forma quase automática, como experimento de criação – nada me detém aqui – escrevo para não enlouquecer, e carrego estes nomes vetustos, e as canções, essas canções do futuro que me aquecem e sopram paisagens em meu ouvido: amor meus pondus meum – o amor é o meu peso!
Baleia nos leva ao inusitado dos inusitados, "La Femme à Barbe", uma regravação da interessante chanson de Brigitte Fontaine, um dos nomes mais contundentes da cena musical avant-garde francesa na segunda metade do século XX. A regravação de Juçara Marçal é bastante fiel à de Fontaine, embora com um frenesi tribal que esquenta e lança ominosas penumbras sobre o ouvinte: sombras da noite sem fim, em cujo centro queima a fogueira dedicada ao eterno feminino. A canção é o augúrio do matriarcado renovado, redivivo, recomposto na voz que canta. E toda voz que sangra será uma voz que canta.
"Oi Cat", por sua vez, remete-me tanto a uma sádica, ácida (excêntrica) paródia do atual momento político - o chauvinismo, a chancelaria de machos na sauna - quanto a um determinado tipo de composição que, para mim, possui seu referencial maior no cancioneiro de Rogério Skylab ("Qual Foi o Lucro Obtido?"). O delírio dos timbres, sob o pulso constante, quase basso ostinato, enquanto a voz-guia se distorce - o efeito é perturbador e potente.
Do delírio à introspecção em "Lembranças Que Guardei", com participação de Fernando Catatau, onde até quase seus dois primeiros minutos, praticamente ouvimos apenas percussões (eletrônicas e não) e as vozes de Juçara e Catatau. O refrão, no entanto, desfolha a canção com lindas cadências de matiz pop e urbano, com guitarras e sintetizadores, vocoders rasgando a textura sonora da faixa. O arranjo é inteligente e imprevisível - como é o álbum como um todo. E a coda final, sombria e enigmática, fechando a canção excelentemente.
Na penúltima faixa, "Corpus Christi", já estamos ambientados à linguagem estética do disco; ainda assim, a letra de "Corpus Christi", pontuada em notas revolventes, impressiona. Uma descrição do feriado em pleno Rio de Janeiro, e não do mistério cristão, que no entanto permeia a própria letra em tudo o que se evita dizer sobre; por consequência, o mistério do corpo de Cristo se torna o próprio mistério da cidade, fatiada e rejuntada na trajetória de seus moradores, destinatários da tragédia carioca. E a voz compassiva de Juçara sobrepairando, da orla à cidade adentro.
De "Corpus Christi" à "Iyalode Mbé Mbé": o repertório simbólico do disco por fim encontra suas raízes, e na transição entre uma faixa e outra há um pequeno exemplo do percurso brasileiro sugerido por Juçara Marçal e sua talentosa trupe: retorno à origem, revisitando o mistério da raiz com a experiência da ponta. E que a linguagem amalgama a força das eras no gume da própria língua, e que o misterioso se torne estético, e esteja feito canção, e que o ouvinte busque nos vãos a própria força: estamos diante de uma obra prima.
Ouça Delta Estácio Blues, de Juçara Marçal
