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Feito Raio (2021), Joana Terra

por Alexandre Marzullo

 

...cósmica, quântica, lâmpada lunar

Sensibilidade, profundidade e uma vocação melódica privilegiada: o segundo álbum de Joana Terra, Feito Raio, se desenvolve como uma jornada íntima, “espalhando flores e folhas” com jeito de corpo e força poética – quase como se a artista, em cada canção, compartilhasse um delicado capítulo de si mesma.

Esta característica marcadamente pessoal, conquanto doce, já estava em bastante evidência no primeiro disco de Joana Terra, Vermelho, lançado em 2019.  Tal como aquele, Feito Raio apresenta uma atenta e inventiva presença instrumental, também sob a direção musical de Juliano Holanda; o álbum é um segundo passo firme e decidido neste desdobramento de si realizado pela artista dentro da canção.

Portanto, não é fortuita a escolha da faixa “Feito Canção” para abrir Feito Raio. A equivalência metafórica, sugerida entre os termos “canção” e “raio”, reverbera como um eixo conceitual ao longo da obra; ora, não é por acaso que a faixa-título do disco seja justamente a última do repertório, construindo uma circularidade para o fenômeno da canção sob a voz de Joana Terra. Perene infinito. De tal maneira, a ideia de um facho de luz ou relâmpago (afinal, "feito raio") empresta qualidades elétricas, imediatas, iluminantes à ideia de canção em Joana Terra – canção: esse objeto da voz que eriça o corpo, arrepia, provoca encanto e ardor. Feito raio, em suma, a canção acontece, e feito canção, vem a artista: 

 

mesmo que um dilúvio caia

hei de ir mantendo a calma

e construir embarcação

que saiba atravessar a solidão

feito canção

Aidna comentando a faixa de abertura, nela também somos apresentados às diretrizes musicais do disco, como um todo. Ao longo de Feito Canção, a voz de Joana Terra, solar, flutua sobre a interessante e assertiva elaboração instrumental das faixas. Repercutidos em sua inteligência ao longo do álbum, tais arranjos jamais se apresentam óbvios; pontuam com inquietude e criatividade, canção a canção, os enunciados da artista.

É interessante constatar que, embora o álbum tenha sido realizado com tantos parceiros diferentes (Juliano Holanda, Lucas Torres, PC Silva, Ezter Liu), é notável a convergência de imagens da natureza na poética de Joana Terra, como forças elementares (mais uma vez, feito raio!) encarnadas na figura da artista. A título de exemplo, veja-se a segunda faixa, “Mergulho”, onde Joana canta, entre sensual e sibilina: “pareço lagoa, no fundo sou mar”. Suponho que o que permite esse ir e vir metamorfo entre os estados e forças da natureza, anímicos, e a própria feminilidade do canto de Joana Terra é a paixão (talvez, um outro nome para dizer "canção & raio" ). E é sob tal signo que "Queimando de Amor", terceira faixa do disco, acontece: a paixão como retrato fiel do desejo, melodioso e cor de vinho: desvelo de intimidade entre primaveras do corpo, madrugada alta.

 

tem um teor de álcool em mim

que alimenta os meus incêndios

ondas de calor

 

Mas se as três primeiras faixas encantam, ora com força, ora com graça, é em “Cíclica” - onde também participam Ceumar e Ezter Liu - que temos uma espécie de primeiro clímax do álbum. A canção apresenta um dos mais belos retratos do princípio feminino na canção, esta intangível qualidade ao mesmo tempo além e em toda parte, “eterno radiante” e “oculto atrás do oculto”. Cíclica, mística, mandala solar / cósmica, quântica, lâmpada lunar – eis os belos versos de seu refrão. Imagens de um absoluto que se especifica no particular, somente para então extravasar; é a mulher em plenitude, imperatriz, no alto e do alto de seu canto. “Inventa mundos inteiros”, e faz nascer canções, paixão, trovões e relâmpagos.

A faixa seguinte, “Você no Ar”, alegre e gentil como somente a canção popular consegue ser, sequencia perfeitamente “Cíclica”, reverberando a leveza amorosa de “Queimando de Amor”. Nos versos da canção, a protagonista espalha folhas e flores ao amor, enquanto a cidade urge, infeliz porque não sabe de nada que diga respeito à amabilidade. Portanto, a cidade não ama; passa e perde tempo. Mas Joana Terra, ao cotnrário, sabe: o amor inaugura seu próprio ritmo, sua própria ordem, sua própria urbe.

 

encaro o tempo como deve ser,

em dissonantes passos – suaves passos

olho na janela, nem vejo a vida passar

espalho flores e folhas, você no ar

A canção seguinte, “Vai”, é um pungente dueto de Joana Terra com Almério. É o ponto mais introspectivo do disco, colocando em evidência tudo o que estava poeticamente implícito até aqui, isto é, o desdobramento do ser na canção. Devir de luta, que demanda esforço e coragem, motivo pelo qual a resignação dos versos vem acompanhada de imagens verdadeiramente sobre-humanas:

seguir andando sobre os cacos

e comer poeira aos bocados

contando os graus do mormaço

no mesmo instante em que vai

seguir andando sobre as águas....

Tais versos se sucedem em um crescendo mais poético do que musical, e que no entanto funciona pela constância da tensão ao longo da faixa, melodicamente sustentada pelos cantores. O timbre singular de Almério, belo e preciso, contribui para alçar a canção a um ponto de singularidade no disco – trata-se de cantar a importância daquilo que se encontra, e não daquilo que, em vão, se procura ser.

Mas está na próxima faixa, “O Amor nos Tempos” a tempestade, finalmente. Eis aqui a previsão das intempéries que o amor sofrerá nos tempos da ira, do medo, da peste. A nota de conflito e angústia que o arranjo convoca reflete, sonoramente, nossa própria contemporaneidade. Sob sua urgência desumana, o amor vai virar mercúrio (...) vai ser obscuro, vai ser preso em postes, vai ser necessário (...). E vai sair de casa; há tanto horizonte porvir. 

Fechando o excelente disco, o samba “Feito Raio”, faixa-título e faixa final, volta o olhar (sem virar estátua de sal) para a jornada realizada – "depois dessa água que restou" –, mantendo, no entanto, os olhos altivos no fenômeno do amor como presença do ser. Pois mesmo depois que a represa arrebentar, (como quem diz, “mesmo depois de tudo declarado”), ainda acontecerá o que deve acontecer, seja como for. E será com um clarão de beleza e canção, na voz doce e cósmica de Joana Terra. 

deixa o vermelho florir

e deixa o azul derramar

pois quando você der por si

é melhor esperar

vou chegar bem assim

feito um raio de luar

Feito um raio, realmente chegou.

Ouça Feito Raio, de Joana Terra:

https://open.spotify.com/album/32dyL77yLoS7KOV10ttP7A

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