UMA CANÇÃO clássicos e contemporâneos
editores:
Marcos Lacerda & Alexandre Marzullo
Pacífica Pedra Branca (2021), Jennifer Souza
por Alexandre Marzullo
...e tudo o que o sol e os sóis ensinam
Preâmbulo I : a manhã transparente
Áurea, a estrela d’alva da manhã
não desafia o sol, mas brilha junto.
Evapora o frio úmido das madrugadas:
dentro da mais terna manhã,
tudo é possibilidade e reencontro.
Eis a deixa e a correlação que determina a concepção e a experiência do álbum Pacífica Pedra Branca, de Jennifer Souza: a palavra-chave é luz.
Preâmbulo II : Luz, Corpo, Música
Belo e auroral, a audição de Pacífica Pedra Branca desliza imperturbável pelo campo sonoro do ouvinte; a imersiva experiência remete a uma atemporalidade poética, uma dilação do sereno e sensual, como no par de versos de Alumbramento, de M. Bandeira:
...lírios de espuma
vinham desabrochar à flor
da água que o vento desapruma...
O uso de poetas e poesia para tratar de Pacífica Pedra Branca não é fortuito; justifica-se por se tratar de um disco que apresenta uma atmosfera extremamente pictórica, numinosa e, ao mesmo tempo, concentradamente musical. As referências a uma convivência celeste começam pelo próprio título de suas faixas – "Ultraleve", "Birds", "Amanhecer", "Serena", [...] "Ser no Espaço a Minha Luz", "Na Ponta dos Pés", "Oração ao Sol" – e repercutem-se no próprio corpo das composições.
Além disso, há uma primeira chave de leitura no canto de Jennifer Souza, ao mesmo tempo contido e repleto de matizes: um canto que forja ambiências e nelas habita, somente para migrar novamente, descobrir outras miragens – atmosferas, nebulosidades, corpo vivo no ar. Trata-se de uma voz que viveu as alturas e distâncias que canta; por isso, reside precisamente em seu canto o ponto fundamental de sua assinatura autoral, indicando que tal conjunto de escolhas estéticas não se sucedeu por mero capricho de estilo, mas antes, por um movimento interno, contínuo e comprometido com o próprio ofício, com o próprio fazer-canção – que poderíamos qualificar como uma forma especial de "tornar-se poesia".
Há algumas semanas, tivemos a oportunidade de escrever uma concisa nota sobre o Pacífica Pedra Branca para o Blog Uma Canção # 1, onde assinalamos uma segunda chave de leitura para o álbum, em seu próprio título:
Sob uma sensibilidade rítmica que nasce da convergência entre o jazz e a canção popular (não por acaso, as harmonias remetem ao universo sonoro do Clube da Esquina), a suavidade dos timbres e texturas empregadas por Jennifer Souza são instigantes; ao longo de suas nove faixas, apontam a presença etérea de um vir-a-ser, refletindo desdobramentos introspectivos e peculiares.
Jennifer Souza canta como quem investiga a própria subjetividade, apresentando suas canções como plataformas para voos internos - mais do que autobiográficos, autopoéticos; mais do que escrita de si, reescrita e descoberta. Possibilidades que surgem para quem encontra na canção o próprio nome.
Segundo o próprio release do disco, escrito por Pedro Antunes, Jennifer Souza concebeu o título de seu álbum a partir da descoberta dos significados simbólicos de seu nome e sobrenome artísticos. Nas palavras de Pedro Antunes, “Jennifer descobriu que seu nome tinha por valores associados as palavras suave e branca, enquanto Souza pode significar pedra (...). Assim, "dando-se direito à liberdade poética de trocar suave por pacífica, Jennifer tinha o nome do trabalho que lança”.
Em outras palavras, o álbum Pacífica Pedra Branca não trata apenas de uma coletânea de canções: irrompe no disco uma anunciação da própria artista. Jennifer Souza – ou Pacífica Pedra Branca – acontecerá.
Preâmbulo III : do Flâneur ao pleno voo
O interessante é que no primeiro disco de Jennifer Souza, Impossível Breve (2013), já tínhamos (com o benefício de um olhar retrospectivo) traços dessa busca pessoal, ao mesmo tempo suspirante e aspirante por leveza e candura. Canção a canção, tanto Impossível Breve quanto Pacífica Pedra Branca se inscrevem na ordem das sinuosidades do afeto, do calor incontrolável do percurso dos encontros e desencontros. Como resultado, em ambos os discos temos um sentimento de mundo tornando-se voz, iluminando e reconhecendo luz nas coisas por onde passa. De modo que faz todo sentido buscarmos interlocuções possíveis entre uma e outra obra.
Veja-se por exemplo a faixa "Le Flâneur", de Impossível Breve. Na letra da canção, assinada por Jennifer, há uma identificação genuína entre a artista e o tipo literário do flâneur, na transitoriedade daquele que pertence a todos os lugares e a nenhum lugar ao mesmo tempo:
hoje sou só eu correndo
da mesma solidão
[...]
tudo distante
tudo deserto
tem nome esse lugar?
talvez eu grite e alguém escute
enquanto ensaio
rodopios soltos a flanar
meus olhos vão se enxergar
e isso vai mudar
eu sei
Ora, como se sabe, é inevitável que a figura do flâneur seja, no mais das vezes, solitária. E o motivo é simples: está em sua solidão a chave característica que anima seus movimentos, seu sem-rumo nas cidades, em contraposição à vida regrada da multidão que caminha junto e sofre junto, e se aliena em coletivo. Mas ao flâneur (ou à flâneur), não; ele(a) nega tal alienação, indo de encontro ao resíduo, ao detalhe, ao ócio da própria liberdade. Assim, fora de qualquer função, por não existir no tempo, não lhe alcança nenhuma utilidade a cumprir; logo, sem valor, inquantificável, o flâneur vislumbra a dimensão peculiar que lhe torna capaz de notar a si mesmo(a) como sujeito destacado dos demais. Daí irrompe uma espécie de "torna-te quem tu és", sob o vão da realidade. É o horizonte final da flânerie.
Ao longo de Impossível Breve, este salto final ao horizonte possível ainda é tratado como um "algo" a se alcançar; em Pacífica Pedra Branca, contudo, a impressão é que nós estamos no horizonte, e em pleno voo com a artista, como se Jennifer Souza tivesse cumprido sua própria profecia (esteticamente falando). Veja-se a letra de "Ultraleve", faixa de abertura de Pacífica Pedra Branca:
passo em frente a todas as cidades
meu sapato ainda me protege os pés
me tornei tão só
entre o chão e o céu
nuvens em tons de lilás
só quero poder dizer que sim
minha guitarra me leva e me faz sorrir
hoje sou a soma dos caminhos
[...]
A soma de todos os lugares, onde as coisas passam a convergir, se comunicar, permitir conjunções e associações. E a linguagem abre: o que é isso, senão a descoberta de um sujeito que atua e transita no mundo? Flâneur, feito canto, aprendeu a voar.
entre o chão e o céu
nuvens em tons de lilás
Pacífica Pedra Branca: contrastes e transbordamentos
"Ultraleve" também nos demonstra o que devemos esperar do disco, sonoramente. Para começar, há um interessante jogo de contrastes entre o canto sereno de Jennifer e os arranjos, expansivos (mas nada intrusivos) ao longo do disco. Veja-se o exemplo da primeira faixa: enquanto a artista trabalha sua expressão vocal delineando, com muita sutileza, as nuances dos versos, a instrumentação é dinâmica, impulsiva e repleta de acentos jazzísticos; a percussão propulsiona a faixa a uma dimensão imprevista. Tal elasticidade nos arranjos parece, num primeiro momento, tensionar a interpretação de Jennifer Souza; mas numa segunda cogitação, percebe-se que há uma perfeita contiguidade, como uma ambiência orgânica. Um desenvolvimento maturado, que reflete a tremenda intensidade (velada) no canto sofisticado de Jennifer.
Tais intensidades e transbordamentos se tornam mais e mais claros (sem qualquer trocadilho) ao longo do disco, especialmente à medida em que o álbum ascende em metafórica luminosidade. Como na bela "Amanhecer," onde a manhã tem o mesmo sinal do desvelar privilegiado do amor; é sob o signo do afeto que os instrumentos contornam o canto luzidio da artista. A mesma suavidade (sob a qual habita o furor de tudo que se apaixona) desliza, com doçura em "Serena". Aqui as imagens solares continuam, como continua a alegria e a delícia dos encontros.
Tais alturas - os poetas sabem que as alturas do amor jamais cessam - repercutem em "Crescente", que começa quase que em pianíssimo, com tremenda delicadeza: apenas um piano e um violão, pontuando o canto sereno e sensual de Jennifer. Mas "Crescente" desenvolve-se, naturalmente, e termina com um movente naipe de metais; se perseguirmos a metáfora do voo, há uma inegável sensação de vertigem aqui. O clímax desta narrativa ascendente, no entanto, é inegavelmente a faixa-título, "Pacífica Pedra Branca".
A própria artista remete a inspiração para o arranjo da faixa à clássica canção "Amor de Índio", parceria dos lendários Beto Guedes e Ronaldo Bastos. Faixa-título do segundo álbum solo de Beto Guedes, produzido pelo próprio Ronaldo Bastos, "Amor de Índio" é uma das canções mais regravadas do cancioneiro brasileiro. E de fato, a guitarra como instrumento principal, dentro de uma estrutura harmônica rebuscada e uma melodia ao mesmo tempo ágil e acessível encontram-se presentes na sensível "Pacífica Pedra Branca":
pacífica pedra e o mar
branca é a cor do sal
que lava, que cura a dor
mais leves meus pés no chão
que passos vão me guiar
pra perto do teu amor?
acesa a luz do sol,
não solto das tuas mãos
O sol, o amor, o outro: a luminosidade continua em "Ser No Espaço A Minha Luz", faixa seguinte, uma bonita balada, contemplativa e suspensa como um véu leve, longe, alto. A esse momento do disco, já estamos capturados pela poética diáfana da artista, e com tantas referências ao astro solar, é apenas coerente que a faixa final seja uma dedicatória a esta força que asas trouxe à caminhante, da distância de Impossível Breve até aqui.
E é um verdadeiro fecho de ouro. "Oração ao Sol" talvez seja a faixa mais emocionante do álbum; o dueto de Jennifer Souza e Tiganá Santana é comovente e encantador, e a atmosfera introspectiva da faixa atua como um cálido toque, uma espiritual poesia. Os violinos compõem o corpo da faixa ao lado de uma pontual guitarra, dedilhada; Tiganá é impecável, veludo luminoso. E no uníssono, algo acende em todos nós. Pacífica Pedra Branca.
Ouça Pacífica Pedra Branca, de Jennifer Souza:
https://open.spotify.com/album/0935Xbp9VAkdEFCHXIMGGu
