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Criolo, um perfil

por Marcos Lacerda

 

Criolo é uma das realidades e realizações mais profundas da cultura brasileira. Ele une e sugere sínteses expressivas entre o Hip Hop, uma das movimentações mais vigorosas da arte e da cultura no Brasil das últimas décadas, e aquilo que se convencionou chamar “MPB”, associada a artistas como Tom Jobim, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque, Edu Lobo e Elza Soares. E também o samba, a canção da época de ouro, e muito mais.

 

Lembro de quando surgiu o fenômeno Criolo, com a obra-prima “Nó na Orelha”. Houve muita comoção, algum deslumbramento excessivo, interesse genuíno da crítica, espanto com a densidade das canções. Espanto que não conseguiu esconder, em alguns, um certo ressentimento. É que mesmo depois de Cartola, Wilson Batista, Nelson Cavaquinho, Itamar Assumpção e Mano Brown, ainda causa desconforto para alguns ver um artista filho da classe trabalhadora precarizada como protagonista culto do campo cultural e artístico.

 

Caetano Veloso cantou “Não existe amor em SP”, ao lado de Criolo. A canção tem versos com metáforas sofisticadas sobre a miríade de sensações visuais, sociais, políticas, afetivas, existenciais da experiência de vida numa das metrópoles mais intensamente vivas e complexas do mundo: “O labirinto místico/ onde os grafitam gritam/ não dá pra entender”

 

Depois dele, Chico Buarque, que fez uma menção à atualização de Cálice, sua “cantiga antiga”, feita por Criolo. Chico cantou “Pai, afasta de mim a biqueira/ Pai, afasta de mim as biate/ Pai, afasta de mim a cocaine/ Pois na quebrada escorre sangue”. E todos entendemos melhor a ponte que liga e traz enovelamentos complexos entre o Brasil da Ditadura Militar e o Brasil da redemocratização e das eras FHC e Lula. Não sabemos ainda muito bem o que veio e o que vem depois. O país vive em suspenso desde 2013.

 

Uma outra canção sua mescla experimentações vigorosas da linguagem de vanguarda, com descrição poética de um contexto de cotidiano violento, no comércio de drogas ilegais em algum dos muitos bairros pobres da periferia de São Paulo: Subirusdoistiozin. Experimentação formal bem resolvida com ambientação política e social complexa. Também aqui o eco das vozes e das dores dos tempos de chumbo assumem feições fantasmagóricas no tempo presente: “ Licença aí patrão/ eu cresci no mundão / onde o filho chora e a mãe não vê”

 

Ney Matrogosso gravou o bolero sombrio “Freguês da meia-noite”. Em uma das muitas esquinas de São Paulo, em meio à mercados, flores, confeitarias, largos, quartos, cães, friezas d’alma, metáforas densas, angústias profundas, a vida que foi e não poderia, doces, pratos, salivas, fissuras: “meu cão que não late em vão/ no frio atrito meditei/ dessa vez/ não serei/ seu freguês”.

 

Milton Nascimento fez mais. Uma turnê com canções compartilhadas. Vi um desses espetáculos, no Vivo Rio. As canções de Milton eram cantadas por todos, naquele estado de transe que a canção popular mais inventiva ainda consegue criar. As canções de Criolo eram cantadas no mesmo estado de transe. Quando Milton cantou “Nó na orelha”, o samba que mistura figuras de desenho animado com movimentações no limite da “lei” e da margem da lei, ao lado de Criolo, as sugestões de sínteses expressivas entre Hip Hop e MPB pareciam se confirmar. Naquelas canções. Naquele cancionista

 

O Hip Hop continua na vanguarda da criação em música popular no Brasil. Neto, do Síntese, Rico Dalasam, Karol Conká ( especialmente do álbum “Batuk-freak”), Rael da Rima, o pop star Emicida, são alguns dos exemplos da novíssima geração. A dicção culta de Sabotage e a poesia altamente sofisticada com inovações formais sem precedentes de Mano Brown e dos Racionais MCs, situam a música popular feita dentro do movimento Hip Hop no centro da nossa música de invenção.

 

Convoque seu buda é um álbum de continuidade e confirmação. Os primeiros versos da canção que dá título ao disco são antológicos: “Convoque seu buda/ o clima tá tenso”. Em “Esquiva da esgrima” uma descrição poética do Brasil contemporâneo ("Novas embalagens pra antigos interesses/ É que o anzol da direita fez a esquerda virar peixe"). O belo samba “Fermento pra massa” mescla canção popular com divisão de trabalho ( tem fiscal que é partideiro/ motorista, bicheiro e dj cobrador), manifestação política e a cidade emperrada com uma greve de ônibus ( “eu que odeio tumulto/ não acho insulto manifestação”), tudo valendo como uma reflexão sobre a cidade que precisa se movimentar, mesmo que de forma cruel e violenta, carregando tudo e todos num abismo sem fundo porque repleto de coisas amontoadas. A engrenagem trava e o pensamento se manifesta de forma direta, sem rodeios (“farinha e cachaça é fermento pra massa/ quem não tá no bolo disfarça a desgraça”)

 

Em “Casa de Papelão” o fio de prumo entre a vida e a morte, e o mistério do sentido das coisas atravessando os “corpos na multidão”, em suas casas de papelão. A morte atravessando tudo - “esquartejada a alma” - em seres que habitam os subterrâneos mais escuros da cidade, que mais parece uma máquina de moer gente

 

O álbum confirma a versatilidade de gêneros de canção e as experimentações formais na linguagem, característica das canções dos artistas do Hip Hop, desde que o rap é rap. Gêneros variados, experimentações formais e vitalidade poética, sem negar a complexidade do real- na sua dimensão social, política, afetiva, existencial e conceitual. Nada mais distante dessas canções – e das canções de Mano Brown, Sabotage, Thaide, Dexter – do que uma mera descrição da realidade “tal qual ela é”. Os artistas da canção do Hip Hop sabem que a arte precisa lidar com a forma, e sabem que a forma tenciona, dissolve, gera linhas de fuga e fendas nisso que chamamos “real” ou realidade “tal qual ela é”.

 

Criolo sabe disso.

 

Depois do “Convoque seu buda”, relançou seu primeiro álbum: Ainda há tempo. Fez ainda muito mais. Lançou um disco só de sambas autorais, “Espiral da ilusão”. Foi seguindo, seguindo. Fez trap, se aproximou de Alcione, com quem gravou uma série de clássicos da canção brasileira. E, agora, acaba de lançar “Samba em três tempos”, onde confirma a sua excelência como intérprete, além de exímio compositor. Neste novo projeto, canta Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, faz um passeio com muita naturalidade por canções como “Que será”, “Canto das três raças” e “Agoniza mas não morre”. Tudo com muita elegância elistilística e dicção perfeita. Criolo pode ser muitos, pode ser tantos e parece que está sempre no ápice.

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