UMA CANÇÃO clássicos e contemporâneos
editores:
Marcos Lacerda & Alexandre Marzullo
Cecília Beraba - Eterno Meio-Dia: parcerias com Jorge Mautner (2021)
por Alexandre Marzullo
A ancestralidade é contemporânea, e assim é Eterno Meio-Dia, o primeiro disco de Cecília Beraba. Composto inteiramente por parcerias entre a jovem cantora/compositora e o xamã do Kaos, tesouro de nossa música-pensamento, Jorge Mautner, enquanto disco de estreia, a mensagem é forte: as composições da dupla Beraba / Mautner apresentam, em seu panorama total, uma artista comprometida com seu próprio ofício e com a pluralidade da canção brasileira; sobressaem, ao longo das faixas, como motivo fundamental, a possibilidade mágica da palavra e da melodia como construção de si e do mundo.
Há uma chave de leitura no próprio título do álbum: Eterno Meio-Dia é uma construção tão nietzscheana quanto mautneriana, e diz respeito à construção de um tempo além do tempo, construção esta calcada, no entanto, em um pertencimento à alegria - quase como quem diz, "eterna primavera". Sem nenhuma dúvida, trata-se de uma expressão muito própria, e muito típica, de uma tradição poética que observa, na figura do artista, a "demiurgia das coisas", ou seja, a (re)invenção do mundo (em outras palavras: um determinado modo de se fazer acontecer). Particularmente, penso que é de tal maneira que Cecília Beraba acontece no disco, em sua pluralidade, ou seja, com tudo aquilo que a permite acontecer, e a par de todas as suas referências, bagagens de canção, instigações filosóficas, sentimentos de mundo: acontece como lançamento perpétuo, caminho perene de acontecer: eterno meio-dia, pois.
AInda, esta ideia de um "eterno meio-dia" simboliza também uma espécie de trama-urdidura na concepção do disco, atando organicamente sua inspiração poética; não só abre o álbum - afinal, é seu título -, como também o fecha, sendo o verso final da última canção do disco, Sagrada é a Família. Um "verso-presença", poderíamos dizer (é válido apontar que há, ainda, uma canção bônus depois do eterno meio-dia, e que na realidade é a única de autoria unicamente de Cecília Beraba: a deliciosa Eremita Erê, que, de forma instigante, traz uma sonoridade diferente do conjunto orgânico do disco; aponta, com inquietude, para outros horizontes).
Seja como for, é dentro deste diapasão de uma perenidade poética que pressentimos a altissonante imagem de Jorge Mautner ao longo do disco, permeando as faixas em um sentido "aural"; matiz de Mautner. É, realmente, uma questão de "assinatura das coisas"; ao longo do disco, Cecília Beraba articula, com clareza e consciência, uma determinada forma de dizer que é indiscutivelmente mautneriana (e que não poderia ser diferente, considerando-se a dicção original e a métrica única que caracterizam as composições de Mautner). Há quem diga, e não acho inequívoco, que a verdadeira inauguração do poeta, em todos os tempos, é a descoberta de sua "forma" (arte é estilo, já dizia Stendhal), muitas vezes referida como a revelação de sua voz, ou ainda, o seu devir. O que se depreende ao longo das faixas é que Beraba, ao homenagear o devir Mautner, celebra e descobre o seu próprio; e isto porque, a apropriação que Cecília faz deste devir mautneriano acontece por meio de suas próprias capacidades e deslocamentos, e com muita segurança; seja pela peculiar distensão das últimas sílabas, verso a verso, seja pela inflexão vocal multifacetada (ao mesmo tempo literata e sensual, e ao mesmo tempo gaiata e misteriosa). Assim, seu próprio canto, doce e firme (Beraba-dervixe), repercute respeito e pluralidade, curiosidade e inventividade; inteligência e comunicação. Em suma, Beraba alça seu voo de voz em um canto raro, pois; com lucidez.
Especificamente acerca desta pluralidade de vozes em Cecília Beraba, talvez o melhor exemplo esteja na sequência entre Religião é Consideração e Tereza e a Tristeza (respectivamente, terceira e quarta faixas do álbum). Em Religião é Consideração, temos um verdadeiro tour de force, com a composição exigindo uma variedade de abordagens vocais diferentes, do canto vocativo ao lirismo introspectivo, em subidas e descidas melódicas e glissandos cheios de delicadeza. Os versos da canção, reflexivos e profundos, se ordenam musicalmente por uma lógica própria e muito orgânica, antecipando um crescendo que se avizinha lentamente, dentro de um sentimento-samba, e que surpreendentemente floresce (no retorno ao refrão que abre a canção: Jorge / Religião é consideração / Jorge / Religião é consideração) arranjado à guisa de uma canção de rock. Se Cecília conversa com Jorge (Mautner) ao longo da faixa, um proto-samba, ou um quase samba, a canção seguinte é um samba total e absoluto. Tereza e a Tristeza demonstra a cantora repleta de ternura, entoando versos de uma beleza singela, um universo puro, um retorno à inocência. E a voz de Beraba com a inteligência da delicadeza, vestindo por completo o lamento do samba.
Essa versatilidade se repete nas inúmeras abordagens musicais que compõem o disco. Sambas da época de ouro, choros, sprechgesang, bossa-nova, música pop, rock progressivo, indefinições, Coisas Tão Delas. Tudo emana, ao mesmo tempo sagrado e profano. Luiz Melodia, Nelson Jacobina, os mestres se honram pela palavra, e não poderia ser diferente em se tratando de Jorge Mautner, e principalmente, não poderia ser diferente em se tratando de Cecília Beraba, como se vê. Transcendido em arte: você, chimpanzé paranoico, canta a cantora, apontando a solução no chiste, no reino erótico do poético triunfante - transando como os bonobos. A saída é orgiástica; orgásmica - um relâmpago: Dionísio torna-se visível em beleza esmeraldina (Nietzsche).
Eterno Meio-Dia: Parcerias com Jorge Mautner é um disco lançado em plena era pandêmica, e inevitavelmente, repercute alguns temas da contemporaneidade: o coronavírus (Verdadeira Realeza, Corona) e as tragédias sociais, especialmente as cariocas (em inúmeros momentos, mas principalmente em Esquadrão da Morte) são tópicos da poética da dupla Beraba / Mautner. Mas sem o olhar demorar-se na miséria humana, a dupla também repercute o amor, o universo, a música brasileira, as tempestades, o eterno desejo em seus versos. Afinal de contas, o "eterno meio-dia" é uma visão poética, estética, e por isso, política: visão carnavalesca, dionisíaca, todos-nós. Estamos precisando.
Ouça Eterno Meio-Dia: Parcerias com Jorge Mautner, de Cecília Beraba
https://open.spotify.com/album/3IkZNndOLR2rpiNPbnlWuY?si=0iiPzzTFTmGmgncDPsxUzg
