UMA CANÇÃO clássicos e contemporâneos
editores:
Marcos Lacerda & Alexandre Marzullo
CÉU - APKÁ! (2019)
por Marcos Lacerda
Pare de forçar o verão
APKÁ, novo disco de Céu, por Marcos Lacerda
A cantora e compositora Céu lançou em 2019 o seu 5º álbum, APKÁ. A sua trajetória começa com o álbum homônimo Céu (2005), que mesclava canções de tom mais pop, como Malemolência; Lenda; 10 contados; uma valsa linda que remonta às canções da chamada época de ouro, Valsa para Bio Roque; um samba-canção delicado e melancólico (Mais um lamento), sambas mais tradicionais (Bobagem, Samba na sola) e canções que singularizam a sua estilística composicional, como nos casos de Ave Cruz, Roda e Rainha.
Quando o ouvi fiquei muito impressionado. Para um primeiro álbum, era coisa demais, em todos os sentidos. O repertório, a inteligência poética que ressoava em muitos versos, a limpidez formal dos arranjos, o canto que, posteriormente, foi ganhando maior densidade e estilo próprio. Depois disso, os próximos álbuns, Vagarosa (2009), Caravana sereia bloom (2012), Tropix (2016), só confirmaram que estávamos diante de uma artista da canção de porte, contemporânea e atenta à tradição, capaz de intensidades literárias e sonoras sem com isso perder o senso da singularidade da linguagem da canção. Céu era já ali, e é ainda mais hoje, uma cancionista de mão cheia.
Feito essa apresentação, podemos ir para as canções de APKÁ.
Como vivemos um momento de mudança na forma de recepção e audição de álbuns musicais, por conta da presença da Internet como o principal meio de difusão, não precisamos necessariamente começar do início das canções do álbum. Afinal, o primeiro momento do álbum, para muitos, pode ser o vídeo de Coreto, seguindo por Corpoacontecimento. Em ambos um clima meio insone, naquele limiar entre a vigília e o sonho, com paisagens imagéticas com algo de soturno e enigmático. Os primeiros versos de Coreto parecem expressar um deslocamento, uma sensação de inadequação, de desejo não correspondido de todo, como aliás pode se ver em outras das suas canções. Ela é a voz que bagunça o coreto, que faz o campo estremecer, que é incandescente como a lava / de um vulcão, mas que não consegue ser compreendida na sua real intensidade (mas você petrificou / tudo, tudo que queimava). Assim como na canção, o vídeo atravessa ambiências distintas: a casa como imagem deslocada; um mar ou lago cinzento e denso; uma casa noturna que remete aos ambientes da soul music da década de 70.
Já o vídeo de Corpocontinente parece um mini-filme, e também é situado entre a vigília e o sonho, entre o delírio e o princípio de realidade. O personagem principal entra num lugar estranho, dentro de uma cidade fictícia, como se fosse um subterrâneo com seguranças, portas, portões, fala miúda, a procura de uma substancia alucinógena. Daí começa a viagem, num lago cinzento que lembra o mesmo lago do vídeo da canção Coreto. Ali vão se desdobrando os versos da canção, cuja forma musical já é em si soturna. O tema é o desencontro de dois corpos que já foram um só, por isso o sentimento da saudade que atravessa toda a canção.
Forçar o verão, uma das canções mais fortes do álbum, parece fazer uma descrição do ambiente social e político do Brasil contemporâneo. Uma nuvem se aproxima / do cartão-postal. A tensão, o tempo fechado, quem o sabe se o mesmo lago cinzento, obscuro, enigmático. Como se tivessem nos pegado a todos distraídos (Ouviram do Ipiranga / quase ninguém viu/eu não vi), a nova ambiência política e social vai se instaurando (num sorriso debochado / estaciona ali). O ritmo dançante da canção pode enganar quem não se atém aos versos. Não se sabe se foi proposital, talvez tenha sido, fazer este contraste. Ao mesmo tempo, os versos finais afirmam o clima pesado e se esforçam para mostrar a necessidade de nos atermos a isso, a nos concentrarmos nesse momento e não forçarmos o verão. Forçar o verão é uma pérola de intuição poética e consciência crítica.
Estas canções, Corpocontinente, Coreto e Forçar o verão dão o tom de todo o álbum. São as canções mais fortes e relevantes. A partir daí temos o que tem sido comum nos álbuns da Céu: canções mais amenas, ainda que muito bonitas como Rotação, sobre a alegria da dança e do amor; Pardo, uma delicada e leve canção de Caetano Veloso; Fênix do amor, que ressoa o jogo de variações na intensidade do timbre da voz, como em muitas das suas composições. Passa por experimentações musicais em Ocitonina (charged), que trata do som do próprio corpo e da experiência da gestão e do nascimento. O álbum nasce, diga-se de passagem, e vai sendo gerado junto com o nascimento do seu filho mais novo. Nada irreal, por fim, retoma o tom mais denso de Coreto, Corpocontinente e Forçar o verão, embora seja uma canção muito mais da conciliação amorosa, do encontro bonito e esperançoso, da felicidade de poder se juntar a alguém com quem podemos ter uma vida comum melhor e maior, embaralhando no mesmo movimento a vigília e o sonho,
libertando antigos ideais
onde vivem sonhos mais reais.
Ouça o álbum APKÁ! (2019)
Céu - APKÁ! (playlist álbum completo) - YouTube
