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Dalva de Oliveira, Voz Brasileira
por Alexandre Marzullo

*A seção Época de Ouro da revista Uma Canção é destinada a importantes e algumas vezes esquecidos nomes de nosso cancioneiro, 

Dalva de Oliveira é uma das vozes mais importantes e fundamentais da canção popular da primeira metade do século passado. Seu canto sempre soube matizar a fragilidade da enamorada ferida, a maciez das sensualidades noturnas, a dor inatacável das partidas, a inocência das confidências sussurradas; na voz, uma potência sob controle, quente e apaixonada. É preciso ouvi-la para entender. Dalva iniciou sua carreira bastante jovem, ao lado do então namorado, o compositor Herivelto Martins; o relacionamento conturbado do casal já foi matéria de série televisiva, e foi uma sensação particular em sua própria época. O que importa, aqui, é que Dalva (Vicentina de Paula Oliveira, em seu nome de batismo) atravessou não só as agressões de Herivelto como o próprio conservadorismo da sociedade carioca da primeira metade do século XX, a qual via com péssimos olhos a presença feminina na categoria artística.

 

Incidentalmente, observando o canto tão lírico de Dalva, é interessante como seu impecável alongamento das sílabas, em vibrato, muitas vezes aponta para o que parece ser um sentimento reflexivo através da enunciação daquilo que causou sofrimento (como no bolero Sábias Palavras, por exemplo). Quase como um lamento de memórias que se perdem na voz, no canto, e que apesar disso sempre revivem, justamente pela experiência do som; é uma virtude constituída, em iguais partes, de paixão e técnica. Este talento expressivo, em conjunto com sua versatilidade e extensão vocal, a granjearam o título de Rainha da Voz. 

Claro, toda Rainha precisa de um reino, e o de Dalva, por vezes, estendia-se além do Brasil. A cantora celebremente excursionou para Buenos Aires, e se especializou, para além dos sambas, maxixes e afins, também no canto de boleros e tangos, dedicando discos inteiros a tais gêneros, cantados ou em espanhol ou em traduções vertidas para o português. É este último o caso da arrepiante Vete de Mí, registrada no álbum Boleros (1958); uma composição do extraordinário artista cubano Bola de Nieve, e que ali ganha uma versão à altura, e talvez definitiva, pela voz de Dalva de Oliveira. E é tão doce, tão doce, tão doce. Vete de Mí é um belíssimo exemplo das escolhas estéticas de Dalva de Oliveira na canção. Afinal, raramente a cantora aborda uma canção de modo uniforme: virtuosa, Dalva emprega múltiplas estratégias a depender dos versos, do andamento cancional, do arranjo, de si mesma. Sem tirar nem por, estamos falando de um canto em carne viva, aceso, de uma construção da experiência pela voz, e que por isso se faz tão impressionante. De maneira que não é exagero algum (talvez o seja para os tristes de espírito) que Dalva, com seu canto, acaba proporcionando uma verdadeira educação sentimental aos seus ouvintes, com a riqueza de tantos timbres emoldurando as melodias, ressaltando as melodias, apaixonadamente cantando as melodias. Trata-se de uma das grandes arquitetas desta ideia de Brasil que reluz, ainda, na canção, apesar de todas as tragédias.

E eis o que se conclui: tudo na voz de Dalva é brilhante e quente, como as ruas do Rio de Janeiro, como os sambas populares dos anos 1930, como as marchas carnavalescas dos anos 1940, como o lume fugidio das boates dos anos 1950. A seu tempo, é deste calor que se entende a natureza da projeção de seu canto, por pouco quase operístico (veja a canção Meu País Verdadeiro, ou o grande sucesso, Ave Maria no Morro), bem como suas escolhas diccionais, ou seja, sua enunciação, ou ainda, o que o compositor e ensaísta Luiz Tatit chama, em síntese genial, de "grão da voz". Claro, é a este grão dourado e impecável que prestam homenagem a pletora das grandes cantoras dos anos 1960 e 1970; belo e régio grão da voz, que sempre entrega suas virtudes a quem lhe procura. Pois Dalva de Oliveira canta para as ruas, pura e simplesmente, para uma ideia de Brasil que preenche os dias na feição de uma identificação entre povo e música. Impossível não ser um canto apaixonado e alegre. Ouvi-la, nas condições em que vivemos, é mais do que celebrá-la: é redimir o presente. Bandeira Branca, amor, não posso mais; pela saudade, que me invade, eu peço paz.

Ouça Dalva de Oliveira:

Bandeira Branca

https://youtu.be/z43iaujDIjM (youtube)                        https://open.spotify.com/track/2XMR09PHSSWKGaSLG7hvV1?si=e6ef92e2fe4a4fd0 (spotify)

Vete de Mí

https://youtu.be/KtaGz-Ouan4  (youtube)

https://open.spotify.com/track/3kV10L60Z70AnII3XUofYU?si=8552b93a14224503 (spotify)

Meu País Verdadeiro

https://open.spotify.com/track/1CmlNQzENEyVMTEyOGEdg9?si=18b28ab8dd4f4064 (spotify)

Ave Maria no Morro

https://youtu.be/NS8Yl8HMStA (youtube)

https://open.spotify.com/track/02Nfmr7rLsoBdnbtv8pwnv?si=132c8d6be1624ed2 (spotify)

Sábias Palavras

https://youtu.be/HsxhK6X2vTo (youtube)

https://open.spotify.com/track/0d725v2iyON2QTVxxLW2Oc?si=dd9c9d4ab3e34af2  (spotify)

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